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BH proíbe carroças, mas a história é de luta e a Esperança nasce!

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Prefeito Kalil sanciona lei que extingue o trabalho e sustento financeiro de cerca de 10 mil famílias carroceiras da Região Metropolitana.

Publicação: 27/01/2021


No dia 22 de janeiro de 2021, um dos dias mais tristes da história de Belo Horizonte, MG, e região: partiram para a vida em plenitude o Padre Pigi (Pier Luigi Bernareggi) e o Professor Michael Marie Le Ven; e o prefeito Alexandre Kalil (PSD) sancionou a lei 11.285/2021 que extingue o trabalho e o sustento financeiro de cerca de 10 mil famílias carroceiras de Belo Horizonte (BH)[2]. A lei prevê que, em prazo máximo de 10 anos, a tração animal em BH não mais exista e seja passível de punição a desobediência dos que permanecerem nesta prática. Dez mil carroceiros/as estão sendo encurralados/as e colocados/as no corredor da morte lenta. Sob a capa do pretenso cuidado com os animais impera o manto do racismo, do ódio aos pobres, do higienismo, do autoritarismo, da violação aos direitos dos povos e comunidades tradicionais, entre os quais estão os/as carroceiros/as, quilombolas, os/as ciganos/as, agricultores familiares e demais comunidades tradicionais que utilizam a carroça no seu dia a dia para trabalhar e viver.

Uma cidade com a grandiosidade, a complexidade e a diversidade de Belo Horizonte não pode excluir a população composta por ciganos/as, quilombolas, indígenas, agricultores/as familiares que são carroceiros/as por tradição de cultura e família e são também Povos e Comunidades Tradicionais, protegidos pelos artigos 215 e 216 da Constituição Federal e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU).


Em carroceata, no dia 19 de janeiro, carroceiros reivindicam o veto do projeto de lei no centro de Belo Horizonte.

Consideramos a lei 11.285/2021 racista na medida em que proíbe o uso dos animais de tração para sustentar famílias, mas nada diz sobre o fato de estes e outros animais como os cães poderem ser “domesticados” (violentados) para estraçalhar pessoas pelos desígnios de forças militares ou para farejar drogas letais e mergulhar em lama tóxica e biocida. Da mesma forma, não há questionamentos na mesma proporção que a perseguição aos carroceiros sobre o uso dos testes em animais que a indústria farmacêutica, a cosmética e a militar perpetuam. “Para isso pode maltratar os animais”, dizem hipocritamente. O Brasil, tendo adotado a ilegalidade da escravidão há pouco mais de um século, se recusa a abolir a escravidão como prática social sobre os corpos negros. Sob a hipócrita capa da proteção aos animais, há o regozijo sobre o sofrimento negro - “que puxem eles as carroças!” - reverberam!

A prefeitura da capital mineira, a maioria dos vereadores e as agremiações supostamente dedicados à pretensa proteção animal garantirão a vida digna das mais de 10 mil famílias carroceiras, com trabalho e renda!? – NÃO!!! São hipócritas, pois o projeto, transformado em lei, simplesmente não prevê e nem garante isso. Por isso, além de racista e covarde, é um projeto de ódio aos pobres! Não basta a pobreza, devem ser jogados na miséria! A prefeitura de Belo Horizonte sabe que em Porto Alegre, RS, sob administração de direita e antipopular, após a proibição do trabalho dos/as carroceiras, apenas uma ínfima minoria conseguiu algum tipo de outro trabalho, e pesquisa da própria prefeitura demonstrou que milhares de famílias carroceiras foram empurradas para a miséria e a fome.

Pisar, violentar e cuspir na Comunidade Tradicional Carroceira entristece o horizonte e violenta a história de BH, cidade construída com o trabalho do povo carroceiro desde o Curral del Rey que, por várias décadas, antes da tração motora, foi imprescindível para a construção da futura capital mineira. Centenas e centenas de carroças pegavam as mercadorias na Praça da Estação trazida pelos trens e distribuíam para toda a cidade. No Museu de Arte e Ofícios, situado na mesma Praça da Estação, estão expostas nas vitrines carroças antigas e utensílios dos tropeiros. Considerado o primeiro projeto museológico dedicado integralmente ao tema do trabalho, das artes e dos ofícios de todo o país, entende-se que há um reconhecimento desta categoria sociocultural, em nível nacional, mas parece que a atual gestão da capital mineira prefere ouvir os “negacionistas”. Os racistas, na prática, dizem: “No museu e nos livros podem estar, mas nas ruas como cultura viva não pode”. Matar a diversidade cultural é exterminar o futuro de uma cidade que queremos justa, fraterna, solidária, o que passa necessariamente pela valorização e reconhecimento da imensa diversidade biocultural presente na cidade. Tudo isso apunhalado agora por esta lei racista.

O que fazer com os milhares de animais (cavalos, éguas, burros e mulas) que foram proibidos de integrar a comunidade carroceira? A solução apresentada pelos que criminalizam os/as carroceiros/as tem sido a “adoção solidária”. Como proposta, os animais serão adotados por pessoas que possuam e apresentem capacidades técnicas e econômicas suficientes para tratar os animais. Essas “capacidades” indicam um determinado modo de tratamento e certa visão – todas elas estritamente ligadas a uma concepção burguesa que quer limitar o cuidado com os animais à concepção reduzida de se ter os animais como seres enclausurados e castrados em nome da docilidade e submissão. Carroceiras e carroceiros jamais se submeterão ao adestramento e ao controle social preconizados por grupos higienistas e racistas.

Carroceiras e carroceiros construíram a história do mundo e também de Belo Horizonte. Contribuem com a limpeza urbana e, por causa disso, devem ser reconhecidos como agentes de saúde pública e precisam ser respeitados como Comunidade Tradicional composta por homens e mulheres, letrados e analfabetos, que carrega história e cultura, e luta contra os maus-tratos para com animais. Atitudes de maus trabalhadores existem em todas as áreas de trabalho sem que em nenhuma delas a extinção da profissão é apontada como solução. Há maus professores, médicos, juristas, garis, padres, pastores, veterinários, vereadores, deputados, carroceiros etc. Maus trabalhadores devem ser monitorados, indicados para a transformação de práticas nocivas e mesmo retirados e/ou proibidos de exercerem a profissão.

Neste contexto de violação de direitos e opressão, lembramos aqui a luta de Michael Marie Le Ven, padre casado, e de Padre Pigi. Michel Marie Le Ven, grande cidadão, Professor da UFMG que partiu para a vida plena aos 89 anos, tendo nascido dia 23 de outubro de 1931. Um dos padres franceses da Igreja do Horto em Belo Horizonte, que foi preso pela ditadura militar-civil-empresarial por incentivar a organização dos/as trabalhadores/as e apoiar a 1ª greve durante a ditadura, nos anos de chumbo, em 1968, dos metalúrgicos, em Contagem e Belo Horizonte. Assessor da Juventude Operária Católica (JOC), posteriormente militante da Pastoral Operária e do Partido dos Trabalhadores, atuante em movimentos comunitários na luta pelos direitos humanos, Professor Michel foi antes de tudo, um grande democrata. Enfrentou a Ditadura e foi vítima do AI-5[3]. Entre os registros históricos que deixou, sua tese de Doutoramento em Ciência Política na USP intitulada Trabalho e Democracia: A Experiência dos Metalúrgicos Mineiros (1978-1984) - Os Movimentos Populares em 1979. Grande Michael Le Ven! Um cristão, outro Cristo libertador. Lutador imprescindível, foi justo e lutou por tudo que é justo até o fim. Deixou-nos um legado extraordinário e revolucionário na Região Metropolitana de Belo Horizonte onde militou organizando grupos solidários de enfrentamento às políticas autoritárias por meio de um lindo movimento de Economia Solidária em Ribeirão das Neves, MG.


Professor Michael Le Ven

Padre Pigi: partiu para a vida plena, aos 81 anos. Um gigante na luta pela moradia digna, própria e adequada em BH e Região Metropolitana. Milhares de famílias foram libertadas da pesadíssima cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de favor, com o apoio e acompanhamento do nosso mestre e profeta padre Pigi. Inesquecíveis os pronunciamentos do Padre Pigi em Audiências Públicas na Câmara de Vereadores de BH e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, defendendo com intrepidez e com ira santa a legitimidade da luta dos Sem Casa pelo direito de morar dignamente. Em momentos de gravíssimo risco de despejo da Ocupação Dandara, na zona norte de Belo Horizonte, hoje com mais de 2.500 famílias assentadas em um bairro lindo autoconstruído, Padre Pigi atendeu nosso convite e em Assembleia com o povo, com mais de mil pessoas, disse de cabeça erguida e com dedo em riste: “Esta terra é de vocês. Esta propriedade estava abandonada há séculos, não cumpria a função social. Vocês, povo querido da Ocupação Dandara, têm direito a esta terra e vocês devem construir aqui as moradias dignas de vocês. Não abram mão de nem um centímetro desta terra. Construam aqui uma comunidade justa e solidária, um lugar bom de se viver”. Estas palavras proféticas animaram o povo a não arredar o pé da luta e a espantar o despejo que insistia em atropelá-los. Assim que ficou sabendo que tinham acontecido as Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, na região da Izidora, também na zona norte de BH, na divisa com o município de Santa Luzia, padre Pigi me ligou e me chamou para conversar. Ele me disse: “Frei Gilvander, as terras ocupadas na Izidora são terras griladas, abandonadas e não cumprem a função social. O povo não pode deixar acontecer despejo lá”. Durante três meses, o Padre Pigi fez pesquisa criteriosa em cartórios de Santa Luzia e de Belo Horizonte e encontrou uma série de escrituras e documentos que, após PARECER de Advogados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), comprovaram a existência de nove indícios de ilegalidades na cadeia dominial da escritura n. 1202, da Granja Werneck S.A. Nove ilegalidades que apontam indícios sérios de grilagem de terra. Com esses documentos em mãos, padre Pigi nos concedeu entrevista em videorreportagem fazendo estas denúncias. Assim, sempre comprometido com a causa dos pobres, padre Pigi também foi decisivo para impedir despejos nas Ocupações da Izidora, onde hoje vivem cerca de 8 mil famílias libertadas da cruz da falta de moradia, da especulação imobiliária, falta de reformas agrária e urbana.


Padre Pigi (Pier Luigi Bernareggi)

Por volta do ano 587 antes de Cristo, na Palestina, com a cidade de Jerusalém sitiada pelo exército do rei Nabucodonosor, há 18 anos dominando e escravizando muitos povos, o profeta Jeremias, ouvindo a voz do Deus solidário e libertador, comprou um terreno em Anatot. O povo entendeu como um sinal de Deus de que o terror da opressão do Império Babilônico passaria e “naquela terra ainda se comprarão casas, campos e vinhedos” (Jeremias 32,15), pois “para Deus nada é impossível” (Jer 32,27). Encurralado pelo poderio do rei Nabucodonosor, o povo compreendeu que ali estava um sinal de Deus: “Vou trazê-los de volta para este lugar, e os farei morar tranquilos” (Jer 32,37). Por meio do profeta Jeremias, Deus acrescentou: “Farei com eles uma aliança eterna e nunca deixarei de fazer-lhes o bem” (Jer 32,40). Ontem, o povo da Bíblia; hoje, o Povo Carroceiro.

Poucas horas após a aprovação da Lei 11.285/21 que proíbe o trabalho de dez mil carroceiros/as em Belo Horizonte, nasceu, no bairro Caiçara, em BH, uma égua no curral do carroceiro Ricardo Célio de Andrade, filho de José Carlos de Andrade, o famoso “Zé da Égua” - uma potrinha (uma eguinha), que recebeu o nome de ESPERANÇA. "Chegou um bebê para a nossa família!", conta Rosemary Pedrosa Leal, esposa de Ricardo. Com a Esperança está aumentando o número de entes desta linda família carroceira.  O nascimento da eguinha ESPERANÇA está sendo saudado como um sinal do Deus da vida, da força e da luz do Povo Carroceiro, que clama: CARROCEIROS/AS, UNI-VOS! Será a mascote da luta carroceira em Belo Horizonte. É necessário e possível reverter essa lei que, se mantida, causará um triste horizonte na capital mineira. Mas não basta Esperança, a ela tem que se somar força, organização e muita luta. A Esperança será inspiração desta nova etapa de luta contra as inúmeras injustiças impostas à comunidade carroceira! Nasce a Esperança: símbolo da luta carroceira. Que beleza!


Zé da Égua, conhecido morador do Caiçara, fabrica carroças do quintal da sua casa.

Estão tentando crucificar 10 mil famílias carroceiras, mas estas soerguerão assim como Jesus Cristo ressuscitou após ser crucificado pelos podres poderes de uma religião opressora, da política imperial e do poderio econômico dos saduceus, latifundiários da época. A luta carroceira se erguerá, transformará asfalto em poeira e ocupará as ruas e avenidas de toda a Belo horizonte e região metropolitana! A comunidade carroceira gritará em cada rincão dessa cidade: “A CIDADE É NOSSA ROÇA! NOSSA LUTA É NA CARROÇA!”[4]

Por frei Gilvander Moreira.

Fotos destaque e carroceata: Cadu Passos/ Jornalistas Livres
Foto professor Michel Le Ven: Rosely Augusto
Fotos Padre Pigi e Zé da Égua: Frei Gilvander Moreira


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.brwww.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis –   Facebook: Frei Gilvander Luís Moreira

[2] Não há censo oficial que indique com precisão os dados, estima-se em 10.000 o número de carroceiros/as e 20.000 o número de animais envolvidos nesta prática e na cidade de Belo Horizonte e nas demais que compões a região metropolitana.

[3] Ato Institucional n. 5, um dos 17 decretos dos generais da ditadura militar-civil-empresarial, de 13/12/1968, que implantou o terror e anos de chumbo no Brasil.

[4] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.



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