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Em BH, lançamento de site e livro da Cáritas MG é marcado por falas fortes

Áreas de Atuação

Evento aconteceu no dia 24/5, no Teatro do Colégio Santo Agostinho, com atingidos, Cáritas e de outras entidades

Publicação: 07/06/2022


“Hoje, neste lançamento do site e do livro, que com certeza vão ajudar muita gente, percebo um clima de alegria. Eu também celebro essa conquista, mas não posso dizer que sinto alegria. Nas reuniões da Comissão (de Atingidos pela Barragem de Fundão de Mariana – CABF), a sensação é outra. O clima é de cansaço. Parabenizo a Cáritas pelo trabalho excepcional; mas lembro que ele não acabou aqui”. A fala contundente de Anderson Jesus de Paula, atingido de Paracatu de Baixo e membro da CABF, marcou uma das mesas temáticas do lançamento do museu virtual “Mariana Território Atingido” e do livro “O direito dos atingidos pela mineira à Assessoria Técnicas”. Os produtos dão a ver quase seis anos de trabalho da Cáritas Brasileira Regional Minas em prol da reparação justa e integral às pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão (Samarco/Vale/BHP), o maior crime socioambiental do país. O evento aconteceu no dia 24/5, terça-feira, no Teatro do Colégio Santo Agostinho, das 9h às 12h, e contou com uma conversa de abertura e duas mesas temáticas que reuniram atingidos e representantes de entidades parceiras na  luta dessas pessoas.


Laís Jabace apresenta o museu virtual "Mariana Território Atingido", durante o lançamento.

Na mesa de lançamento, que abriu o evento, foram apresentados pela primeira vez os produtos. Participaram Samuel da Silva, secretário regional da Cáritas MG; Rodrigo Pires, coordenador da ATI em Mariana; e Laís Jabace, coordenadora do Cadastro conduzido pela organização junto às pessoas atingidas de Mariana. “Entendemos que esses são dois entre vários instrumentos de luta; e de uma luta muito desigual, em termos de estrutura, de poder, de aporte financeiro. Lançando esses dois grandes instrumentos de luta para a Assessoria Técnica Independente, fechamos um importante e intenso ciclo de trabalho. Mas seguiremos no território, junto aos atingidos”, destaca Jabace. 

Os dois produtos guardam diferenças entre si. De um lado, o site busca publicizar informações coletadas durante um extenso cadastramento de atingidos, que resultou em 1.500 dossiês de núcleos familiares, totalizando cerca de cinco mil pessoas atingidas na região do Rio Gualaxo do Norte. A ideia foi contar, a partir das entrevistas e pesquisas realizadas para o cadastro, a história das comunidades, de seus modos de vida, de suas principais atividades econômicas, das manifestações religiosas e da cultura popular, entre outros pontos. O site não parte da perspectiva da tragédia, mas também não deixa de mostrar como a lama causou irreversíveis perdas e danos socioambientais, de saúde física e mental, de recursos naturais e paisagens. “Vejo o museu virtual como uma solução estratégica para apresentar essas comunidades rurais, que entraram para o mapa diante da destruição, só no momento que foram dizimadas. Queríamos valorizá-las para além da lama, sem desconsiderar o crime das mineradoras, que marcou para sempre a vida dessas pessoas. No cadastro, nosso trabalho foi juntar os caquinhos que os atingidos nos traziam para tecer uma narrativa de cada comunidade. E todos esses caquinhos estavam e ainda estão sujos de lama”, completa.

No evento Samuel Silva, secretário regional da Cáritas MG, ao lado de Rodrigo Pires, coordenador do projeto da ATI, realizado pela organização em Mariana.

O livro, por sua vez, se dedica a explicar como se deu a pioneira conquista judicial, resultado da pressão das pessoas atingidos pela mineração, que garantiu, o direito dessas pessoas à Assessoria Técnica Independente (ATI). Para além de artigos de profissionais da Cáritas MG, organização humanitária escolhida pelos atingidos para assumir a ATI e reformular o cadastro em Mariana desde 2016 – que passou a humanizar parâmetros e ferramentas, considerando fatores sociais e de afetos diversos –, a publicação reúne textos de profissionais de outras entidades que também têm trabalhado como ATIs em outros territórios. O objetivo é consolidar o entendimento sobre as Assessorias Técnicas Independentes, mostrando, também, as tantas perspectivas e possibilidades de atuação, servindo, portanto,  como base para profissionais que lutam pela reparação justa e integral aos atingidos pela mineração.  

“Temos vivido, atualmente, um momento de conflito, em que o escopo das ATIs está sendo questionado. Tanto no papel de produtora de relatórios e informações quanto na exigência de uma atuação técnica desvinculada à política. E sabemos que não existe técnica desvinculada da política, toda produção de conhecimento é localizada. Então, o livro tenta organizar as experiências que temos em Minas, em territórios, entidades e arranjos judiciais distintos”, afirma Laís Jabace. “Tentamos costurar essas reflexões para ter um trabalho que servisse como base na construção dessa narrativa. É uma publicação que surge em um momento importante, marcado por um movimento de criminalização e deslegitimação das ATIs. Acho difícil termos outra ATI com a liberdade de atuação como a da Cáritas em Mariana. Mas seguimos em disputa, mesmo sendo uma disputa muito desigual. Contudo, se os atingidos não desistiram, mesmo diante desse cenário, também não podemos esmorecer”, completa. 

Para Paula Zanardi, assessora técnica da Cáritas MG que participou ativamente da elaboração do Museu Virtual, um dos trunfos do Cadastro é o fato de que muitos critérios foram estabelecidos pelos próprios atingidos, baseados no princípio da autodeclaração. “Conseguimos olhar para isso de uma forma comunitária e ampla, porque os danos que uma família sofreu não dizem respeito apenas àquela família, mas a todo um território”, afirma, citando textos sobre assuntos diversos que também compõem o site. “Por exemplo, nos textos escritos através da escuta de crianças e adolescentes é possível ver danos que são comunitários. Consequências comuns a várias famílias, como a privação do brincar, a mudança abrupta para áreas urbanas, os traumas, a perda de desempenho escolar, as ideações suicidas, o uso de remédio psiquiátricas. Quando percebemos essas repetições, deixamos de ver o problema como algo individualizado e trazemos para o contexto de uma comunidade”.

Zanardi defende que a individualização dos processos faz com que a luta perca força, por exemplo ao imputar a ideia de que atingido é somente aquele cuja casa foi atravessada pela lama. “Existe uma tentativa de identificar o atingido como apenas aquele que teve sua casa invadida pela lama. Por isso, falamos de uma ATI continuada. Porque o próprio conceito de atingido é algo que deve ser sempre atualizado, já que o tempo traz consequências. Um exemplo é a comunidade de Monsenhor Horta, que não foi atingida pela lama, mas que depois do crime começou a sofrer com um tráfego intenso pelo centro histórico de veículos grandes, pesados e de carga. Agora, sete anos depois, as casas estão começando a ruir”, completa. 

Anderson Jesus de Paula, da CABF, fez coro durante a sua fala na mesa temática “Contextos de conflito e grandes assimetrias de poder: relevância, desafios e governança das ATIs”, que também contou com a presença de Letícia Aleixo coordenadora do PIPAM/Cáritas MG, Raquel Oliveira, do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais, o GESTA/UFMG), Dr. Guilherme Meneghin, promotor do MPMG e Carla Wstane , do Instituto Guaicuy. “A cada dia que passa, mais pessoas são agregadas, mais atores são acrescentados ao processo. Deixa de ser o atingido e passa a ser o herdeiro do atingido que faleceu. O leque de pessoas atingidas vai aumentando e, ao invés de unir a comunidade, vai dividindo-a entre diretamente e indiretamente atingidos. E no meio desses conceitos técnicos e jurídicos todos, a comissão fica ali, tentando gritar, querendo falar: ‘Olha, eu existo! Já me escutou’”, pontua. “Entender os modos de vida dessas pessoas é fundamental no processo de reparação, ressarcimento e compensação. Inclusive, das formas não pecuniárias, como o atendimento psicossocial. Às vezes, a pessoa só quer conversar sobre o que ela está vivendo e não tem apoio para isso, nem do Estado nem das empresas. Pode ser um papel da ATI, também, sistematizar dores e danos psicológicas”, diz Carla Wstane, cuja entidade atua como ATI nas regiões 4 e 5 da bacia do rio Paraopeba, atingidas pela Vale desde janeiro de 2019.

Laís Jabace abraçada à Marino D'Angelo durante fala emocionante do atingido de Paracatu de Cima, zona rural de Mariana.


Atingido de Paracatu de Cima e integrante da CABF, Marino D’Angelo ressaltou a dificuldade de comprovar na Justiça os danos surgidos anos depois do crime, em uma fala emocionada na segunda mesa temática, intitulada “Levantamento de dados, produção de informações e estratégias multiescalares em situações de conflito mineral”. “Estamos percebendo que o índice de câncer das pessoas da comunidade que estão morando em cima da lama tem crescido muito. Só em volta da minha casa, são quatro vizinhos com câncer, que descobriram há pouco tempo. Mas você vai tentar mostrar isso e um joga para lá, outro pra cá; fica parecendo algo juridicamente impossível de provar”, diz Marino.

Na mesa, mediada por Alexandre Chumbinho (NACAB),  Carolina Machado Saraiva, do Observatório CAFÉ/UFOP, apresentou dados estarrecedores que expõem a omissão e a manipulação de informações por parte da Renova, fundação criada pela Samarco, Vale e BHP em 2016 para gerir os programas de reparação, restauração e reconstrução das regiões atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão . O projeto analisou quase 100 relatórios emitidos pela fundação por meio do Programa de Comunicação, Participação, Diálogo e Controle Social (PG. 06), cujo objetivo, em tese, é tornar públicas as informações sobre o andamento dos processos de reparação. “Queríamos estudar o programa e começamos a ler todos os relatórios já emitidos. São três tipos de relatório: um divulgado na aba do site chamada ‘Progresso do Programa’, que tinha 50 relatórios; outro, enviado ao ‘Comitê Interfederativo’ da Renova, com 44 documentos; e outros quatro relatórios anuais, que a fundação também disponibiliza no site. O três somam um total de 98 relatórios expedidos”, explica. “O que descobrimos é que existem relatórios absolutamente duplicados. Não semelhantes, com um outro dado que se repetiu; mas totalmente iguais. Dos 50 relatórios disponibilizados no site, 32 são idênticos. Percebemos que, de setembro de 2016 a outubro de 2020, os 32 relatórios idênticos foram publicados em pares, em meses diferentes, estabelecendo um certo padrão”, explicou a professora, questionando a transparência das mineradoras frente à reparação das pessoas atingidas.


Assista o evento na íntegra.


Por Lucas Buzatti – Especial para a Cáritas MG
Fotos de Tamás Bodolay

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