COLABORE

Apagar, jamais

Áreas de Atuação

As ruínas da Capela de São Bento, em Bento Rodrigues, são objeto de mais um movimento em defesa do patrimônio da comunidade atingida.

Publicação: 10/07/2024


Mesmo com a passagem da lama, a Capela de São Bento ainda se faz presente por meio de suas ruínas, que garantem a memória da comunidade de Bento Rodrigues. Hoje, o cercamento, grades, tapumes e outras intervenções que isolam a igreja registram o desastre-crime, mas também escrevem um novo capítulo na história daqueles e daquelas que tem muito apreço pelo local. A fé é um dos principais motivos para preservar esse lugar ainda mais vivo, visível e palpável, o que motiva a elaboração de um projeto para resgatar e, de certa forma, refazer toda a estrutura que foi perdida. Destaca-se, ainda, a devoção e o desejo de celebrar em comunhão uns com os outros num lugar que seja mais apropriado e seguro para receber os fiéis.


   

A Capela de São Bento está inserida na história da Estrada Real com a chegada do paulista Bento Godói Rodrigues, bandeirante que desbravou as matas até encontrar pepitas de ouro, onde, hoje, encontra-se um território devastado pela lama. Naquela época, por volta de 1708, a corrida pela descoberta do ouro, o fez ficar e cravar seu nome, dando início aos primeiros passos para a consolidação do lugar enquanto comunidade. 

Essa é apenas uma parte da história de Bento Rodrigues, local que desde o início de sua constituição já carregava as marcas da exploração de recursos naturais preciosos. Alvo de disputa e ganância por dinheiro. Tal controle do espaço pela mineração foi mantido na região ao longo dos anos e culminou no rompimento da barragem de Fundão, em 2015, enchendo de lama o patrimônio.

Com as características físicas ainda muito presentes na memória dos atingidos e atingidas, é comum ouvir da comunidade que “a capela de São Bento era maravilhosa! Ela ainda tem campas com as iniciais de pessoas que foram enterradas dentro da Igreja, uma delas de mármore, do Major Lelis”. 

O que não sobreviveu enquanto matéria, as pessoas atingidas guardam na memória, como o altar central, destinado a São Bento, onde ficavam as imagens de Nossa Senhora Aparecida, de Fátima, de Santana, do Rosário e Nosso Senhor Morto. Do lado de fora, na lateral direita, havia a sacristia e, na lateral esquerda, a capela do Santíssimo. Dentro da capela também existiam dois altares laterais, com as imagens de São Benedito ao lado de Maria Concebida e de São Sebastião. No teto, havia alguns desenhos, dentre eles, destacam-se, uma cruz e as imagens de São Bento, de Nossa Senhora de Fátima e do Sagrado Coração de Jesus. No Coro, ficava o sino e um altar de São Vicente de Paula, onde eram realizados os encontros da Conferência. As paredes eram brancas e as portas e janelas, azuis. Tinha um adro com gramado e árvores em volta. Todas essas memórias, registradas também por sentido atribuído e sentimentos de vivência, precisam ser novamente trazidas como substância. Lembranças que voltarão a ser reais. 

Afinal, o desejo de moradores de Bento Rodrigues é sempre manifestado em diversos espaços, “apagar, jamais! Os pedaços que sobraram é fundamental. Não esquecer o que aconteceu e ao mesmo tempo ter um lugar de fé. Não remover a ‘cicatriz com plástica’, mas deixar lá pra gente lembrar.”

  

Neste ano, após muita luta, a comunidade conseguiu importantes conquistas para preservar e restaurar as características dos bens de valores históricos e humanos que resistiram à passagem da lama. No primeiro semestre, as obras de restauração da capela das Mercês começaram a ser executadas pois, desde o rompimento, a manutenção do espaço deixou de ser responsabilidade dos moradores de Bento Rodrigues e passou a ser da Fundação Renova mas, ao longo desses mais de oito anos, as  atribuições não foram cumpridas por parte da instituição responsável. 

Em relação à capela de São Bento, após solicitações da comunidade junto à Assessoria Técnica Independente, foram realizadas visitas técnicas a outros locais que passaram por destruições e intervenções em ruínas para iniciar a discussão de um projeto construído de forma participativa para as ruínas de São Bento. Esse trabalho teve a participação da equipe da  UNESCO e Fundação Renova, para atender às  exigências previstas no TTAC sobre restituição do patrimônio das áreas atingidas. Os encontros entre as partes envolvidas começaram no primeiro semestre deste ano, entre abril e junho, momentos em que representantes da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão de Bento Rodrigues, moradores da comunidade, Arquidiocese, Práxis (assessoria técnica da Arquidiocese), Cáritas MG|ATI Mariana, UNESCO e Fundação Renova participaram de visitas a algumas obras que, assim como a Capela de São Bento, sofreram grandes danos. O trajeto começou no Santuário do Caraça, especificamente nas ruínas do antigo Colégio e da Escola Apostólica/Seminário. Lá, as pessoas atingidas puderam ver de perto como o memorial foi construído, desde a reestruturação da edificação, ao armazenamento dos bens móveis e também como o projeto deixou preservadas as marcas do incêndio que aconteceu em maio de 1968. O segundo lugar visitado pelo grupo foi em Mariana, a Igreja Nossa Senhora do Carmo, também parcialmente danificada por um incêndio em 1999 e restaurada no ano seguinte com a participação da comunidade local. 

  

  

O terceiro local foi São Luís do Paraitinga, em São Paulo, onde atingidos e atingidas puderam aproximar-se da realidade que os motiva à reconstrução da Igreja de São Bento – como manifestado por eles e elas. Parcialmente destruída pela enchente em janeiro de 2010, a então Matriz de São Luiz de Tolosa e a Capela das Mercês, localizadas no interior paulista, foram reconstruídas com a participação ativa da comunidade, nas decisões junto aos órgãos de proteção e técnicos municipais.

Após definição do projeto de reconstrução, por meio de uma audiência pública, a comunidade esteve à frente da reconstrução, acompanhando cada detalhe, até que, em 2014, pudesse ser reinaugurada. De acordo com representante da comunidade, “em São Luís do Paraitinga, tivemos a noção e sentimento do que é possível fazer. Lá tem mais a ver com a realidade do que nós, atingidos, queremos.” 

O roteiro para conhecer lugares que pudessem servir de inspiração terminou em Ouro Preto, na Fazenda São José do Manso. O local remonta ao século XVIII e os registros históricos, bem como o tombamento a nível estadual, registram indícios de que a casa sede tenha sido o primeiro edifício público de Minas Gerais. Este local abriga atualmente o Centro de Referência do Parque Itacolomi e possui um espaço expositivo que conta a história local e apresenta o processo de restauração da edificação.  Sua restauração partiu do princípio da estabilização e consolidação das ruínas. 

  

  

Os próximos passos do Grupo de Trabalho com o tema “São Bento”, recentemente formado, é agregar mais pessoas da comunidade de Bento Rodrigues para participarem desse espaço. Em organização popular, a comunidade tem se movimentado para voltar a celebrar missas, procissões e seguir com os rituais de devoção em um lugar confortável, propício para tal fim e, sobretudo, seguro. Uma vez que, “não tem uma palavra para resumir o que a igreja de São Bento significa. O sentimento é o mesmo que antes, mas com a revolta pela situação provocada pelo rompimento da barragem de Fundão e todo esse tempo depois.”


Nota: As falas contidas no texto são de moradores de Bento Rodrigues e foram coletadas durante o assessoramento técnico da Cáritas MG. Os respectivos nomes não são expostos para manter o sigilo de fonte solicitado.

Fotos: Silmara Filgueiras

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