A Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) promoveu, na terça-feira (26/02), uma audiência pública para discutir os impactos da possível redução da APA Chapada do Lagoão, em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha. Proposta pela deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) e organizada pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a audiência reuniu moradores da região, ambientalistas, pesquisadores, representantes de organizações que atuam no território, parlamentares e representantes do Ministério Público Estadual e Federal, que alertaram sobre os riscos do Projeto de Lei nº 02/2025, apresentado pela Prefeitura de Araçuaí.
A proposta do prefeito Tadeu Barbosa de Oliveira (PSD) busca alterar os limites da APA Chapada do Lagoão, reduzindo 23% da área protegida, o que equivale a 5.500 hectares. Sob a alegação de que a APA está incidindo sobre os limites do município de Caraí, e que a redução da área protegida seria para corrigir as delimitações, o projeto segue em tramitação na Câmara Municipal, mesmo após recomendação do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) para sua retirada.
Moradores de Araçuaí viajaram mais de 600km para demonstrar repúdio à tramitação do projeto de lei na câmara do município. Foto: Luísa Campos/Cáritas MG.
Amplas críticas à proposta
Durante a audiência, representantes do Ministério Público Federal e Estadual reforçaram que a medida desrespeita legislações ambientais e sociais e pode gerar impactos irreversíveis à biodiversidade e à segurança hídrica da região. O procurador da República em Minas Gerais, Helder Magno da Silva, destacou que as comunidades tradicionais que vivem no território da APA deveriam ter sido consultadas previamente sobre a proposta, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “A lei exige consulta livre, prévia e informada. A Prefeitura não pode ignorar os direitos dessas comunidades, que serão diretamente afetadas pela mudança. É preciso entender possíveis interesses ocultos para apresentação da proposta de reduzir a APA Lagoa do Chapadão. Em direito ambiental não se pode retroceder”, afirmou o procurador.
A professora Vanessa Juliana da Silva, do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro (UFVJM), apresentou um estudo que evidencia a presença da mineração no entorno da APA e o interesse crescente na exploração de lítio na região. “Se todos os processos minerários forem aprovados, a área será transformada em uma cratera, comprometendo as nascentes e a estabilidade do ecossistema”, alertou a pesquisadora.
A pesquisadora também denunciou o risco que a alteração na área do parque representa para comunidades tradicionais da região, que podem sofrer um processo de desterritorialização vinculado ao êxodo rural.
“Muitas vezes eles são empurrados pelos grandes empreendimentos para deixarem suas terras. São empurrados pela especulação imobiliária, pela especulação fundiária, mas, também, empurrados por não suportarem todos os riscos para saúde, para segurança alimentar e para a própria segurança física, decorrentes desses processos no território. Esse processo de desterritorialização não trata apenas do deslocamento físico, mas de uma ruptura com os modos de vida, que são historicamente construídos da relação com a ancestralidade, com o território sagrado”, completa a professora.
A professora da UFVJM apresentou uma série de fundamentações que demonstram os riscos que Araçuaí vivenciará com a redução da Área de Proteção Ambiental. Foto: Luísa Campos/Cáritas MG
Pontuando que o Vale pertence ao povo do Jequitinhonha, e não aos mega empreendimentos que buscam lítio, Rodrigo Pires, assessor técnico da Cáritas Minas Gerais, afirmou que existem uma série de riquezas na região que precisam valorizadas e transformadas em investimento: “O Vale é do povo de Jequitinhonha. Não é da Sigma, nem de nenhuma outra empresa que deseja explorar a região. O Vale precisa, sim, de desenvolvimento, mas não é do desenvolvimento vindo da exploração. É do investimento na cultura, na arte, na música, no teatro, na gastronomia. Tudo isso é riqueza, e feito pelo povo do Jequitinhonha".
A deputada Andréia de Jesus (PT) reforçou a violação, alertando que a redução da APA ameaça a biodiversidade, os modos de vida das populações tradicionais e o abastecimento de água de Araçuaí: “Desde o início do debate do lítio, e as provocações do governador que entrou para o estado para transformar o Vale do Jequitinhonha no 'Vale da mercadoria', infelizmente muitos estão pensando assim, como o próprio prefeito de Araçuaí. Estamos falando de uma crise climática anunciada por aqueles que se beneficiam de uma tentativa de entregar o patrimônio natural para interesse de capitais internacionais. O quilombo é um ato político, preparado para enfrentar a miséria que é a tentativa de destruir os nossos espaços. Nós vamos lutar para que prefeito nenhum continue sendo prefeito se estiver violando direitos. É dever dos tribunais retirar o prefeito dessa cadeira porque ele não representa Araçuaí e não representa o estado de Minas Gerais”.
Vereador de Araçuaí denuncia falta de transparência na tramitação do projeto
Outro ponto criticado foi a justificativa da Prefeitura para a redução da APA, que, segundo o prefeito, seria necessária para corrigir limites territoriais com o município vizinho de Caraí. No entanto, segundo o vereador Danilo Borges, essa argumentação não se sustenta.
“A APA foi criada por lei municipal em 2007 e seu limite já respeita a divisa com Caraí. Se o objetivo fosse apenas corrigir a delimitação, o impacto seria de 86 hectares, e não 5.500 hectares, como propõe o projeto”, afirmou. Borges também questionou o fato de a Prefeitura ter apresentado o projeto em regime de urgência, sem diálogo com a população e com indícios de que as mudanças atenderiam a interesses minerários na região.
Liderança da comunidade quilombola Córrego do Narciso do Meio e militante do MAB, Lucas Pereira, endossa que as violações de direitos seguem ocorrendo por parte do poder municipal: “Cresci bebendo água da chapada do lagoão, comendo o pequi de la, varrendo o chão de lá. Para muitos, isso é sinônimo de pobreza, mas pra nós é um orgulho. O prefeito de Araçuaí fala tanto em democracia, que quer tanto ouvir as comunidades, mas quando a gente pede pra ser ouvido e ter nossos direitos respeitados, ter a Convenção 169 da OIT respeitada, isso não acontece. Que democracia é essa que só escuta o lado que quer aprovar a redução da APA?”
Prefeito de Araçuaí não comparece à audiência
A ausência do prefeito de Araçuaí no debate também gerou críticas. O deputado Duarte Bechir (PSD) alegou que o convite teria sido feito de última hora, mas a deputada Beatriz Cerqueira rebateu, com comprovações documentais, que os convites foram enviados no dia 20 de fevereiro e reforçados por telefonemas.
“O prefeito Tadeu só recebeu a comunicação no dia de ontem. Para desmarcar tudo que teria que desmarcar para estar aqui, ele não conseguiu. Eu estou aqui para dizer em nome dele que em qualquer circunstância que haja necessidade de debate, ele continuará debatendo”, informou o deputado Duarte Bechir (PSD).
Em sequência, a informação foi refutada pela deputada Beatriz Cerqueira, que apresentou os documentos que comprovam o convite feito ao prefeito de Araçuaí, os contatos feitos e a informação enviada à ALMG de que a secretária de Meio Ambiente, Alba Santos, estaria presente na audiência pública: “Se o prefeito de Araçuaí disse ao deputado que não veio porque só recebeu o convite ontem, o prefeito mentiu. Todas as audiências são organizadas e os respectivos convites enviados por uma equipe técnica da Assembleia Legislativa. Na impossibilidade de participar presencialmente, existe o dispositivo de participar virtualmente de qualquer lugar do planeta que você estiver. Essa mentira é um desrespeito ao trabalho dos servidores públicos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.”
Deputada Beatriz Cerqueira exibe documento que comprova convite enviado ao prefeito de Araçuaí. Foto: Luísa Campos/Cáritas MG.
Deputados defendem fortalecimento da proteção ambiental
Além da oposição à proposta de redução da APA, a audiência também discutiu alternativas para garantir maior proteção ambiental à Chapada do Lagoão. O deputado Doutor Jean Freire (PT) anunciou que apresentou um projeto de lei para transformar a APA em uma unidade de conservação estadual, garantindo maior fiscalização e segurança jurídica ao território.
"A existência do lítio trouxe o sonho do progresso para a região. Mas precisamos caminhar para uma extração sustentável e garantir que a sociedade seja ouvida", ressaltou a deputada Bella Gonçalves (PSOL).
Já a deputada Leninha (PT) lembrou que Araçuaí sediou um dos encontros regionais do seminário sobre crise climática promovido pela ALMG em 2023 e destacou a importância de fortalecer a luta pela preservação ambiental. "Não podemos permitir que uma ação local passe por cima do Ministério Público, dos pesquisadores e das comunidades tradicionais", afirmou.
Mobilização continua
Mesmo com os questionamentos técnicos e jurídicos apresentados na audiência pública, o projeto segue em tramitação na Câmara de Araçuaí, podendo ser votado a qualquer momento. A sociedade civil, pesquisadores e parlamentares seguem mobilizados para impedir esse retrocesso e garantir a proteção da Chapada do Lagoão.
“A Prefeitura tenta desqualificar um debate essencial para a sociedade. Mas a luta não termina aqui. Se o projeto for aprovado, denunciaremos em todas as esferas de poder e à comunidade internacional”, afirmou Beatriz Cerqueira.
Foto: Luiz Rocha/Mandato Beatriz Cerqueira
Por Luísa Campos, da Cáritas Regional Minas Gerais