Nessa semana, a Comissão de Atingidos e Atingidas pela Barragem de Fundão (CABF) realizou dois encontros com o Procurador da República, Dr. Eduardo Aguiar, para dialogar sobre questões relacionadas ao momento pós-repactuação em que estão atualmente, e reivindicar uma reparação justa para todas as pessoas atingidas do território de Mariana. A agenda teve o objetivo de constatar as demandas ainda existentes nas localidades, sobretudo aquelas que não foram contempladas pelo novo acordo, e verificar as dificuldades no processo de reparação pisando no epicentro do desastre socioambiental.
Na segunda-feira (7), a CABF, acompanhada pela Cáritas MG|ATI Mariana, se reuniu com o representante do Ministério Público Federal (MPF) e um representante do Programa Diálogos Comunitários, que é fruto de uma parceria entre o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) e a Cáritas MG, para pontuar as lacunas que existem no novo acordo, apresentar casos de descumprimento de diretrizes e tirar dúvidas sobre o que ainda segue indefinido. Já na terça (8), foi realizada uma visita aos territórios de origem de Paracatu de Baixo, Paracatu de Cima e Bento Rodrigues, com passagem pelos Reassentamentos Coletivos.
Na sequência da esquerda para direita: reunião no escritório da CABF e visita em Paracatu de Baixo (origem). Fotos: Quel Satto (1) e Maria Luísa Sousa (2)
Durante a reunião, a CABF se posicionou diversas vezes sobre a necessidade das empresas receberem penalidades pelos descumprimentos das obrigações previstas no novo acordo, uma vez que as pessoas atingidas possuem diversas medidas impostas caso descumpram prazos ou não sigam o que está determinado. O novo acordo prevê a contratação de uma auditoria independente, que ainda não ocorreu, específica para fiscalizar o processo de reassentamento das comunidades atingidas de Mariana. A partir dessa fiscalização, será possível constatar possíveis descumprimentos de prazos da Fundação Renova e Samarco, impondo multa às empresas, conforme determinado no Anexo 1 - Mariana e Reassentamentos.
Para além disso, outras questões específicas do Anexo 1 foram abordadas, como a necessidade de participação das comunidades atingidas no processo de regulamentação da desapropriação e tombamento de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, e determinação de como será o memorial a ser construído no território de origem. O Procurador se colocou ao lado das pessoas atingidas para defender este direito, que também está presente no texto do novo acordo. Nesta oportunidade de dialogar com o MPF, os representantes da CABF reforçaram a importância de se atentar para “interpretações prejudiciais do acordo” feitas pelas empresas.
Na ocasião, Dr. Eduardo explicou à Comissão sobre a estrutura prevista para o Conselho Federal de Participação Social, órgão estipulado no Anexo 6 - Participação Social para fins de consulta, fiscalização e deliberação sobre os programas e ações propostas dentro do novo acordo. Além desta ferramenta de governança, o procurador reforçou que a fiscalização também será realizada a nível estadual, com um comitê próprio. A nível municipal o acordo não estabelece nenhuma ferramenta de fiscalização, mas todos os presentes concordaram que a existência desse comitê municipal seria de extrema importância para acompanhamento das medidas de reparação a serem realizadas pela Prefeitura de Mariana.
Andar com fé
Na manhã do dia seguinte, a programação da visita começou por Paracatu de Baixo, seguindo por Paracatu de Cima, na zona rural atingida, e foi finalizada em Bento Rodrigues. Dentro da Igreja de Santo Antônio, primeiro local de parada, as pessoas atingidas compartilharam preocupações relacionadas à preservação da religiosidade, ao direito ao Sagrado e à cultura local. Um dos exemplos citados foi a continuidade da manifestação da Folia de Reis. Sobre isso, Maria Geralda Oliveira, atingida de Paracatu de Baixo, relembrou o cuidado que seu povo tinha com os instrumentos utilizados, que eram armazenados na casa de seu pai, Sr. José do Patrocínio, conhecido como guardião da tradição. Com palavras direcionadas ao Procurador da República, ela contou que “a lama levou tudo de porteira fechada”, mas que mesmo assim aquele território, além do rejeito das mineradoras Samarco, Vale e BHP, acolhe muitas memórias e práticas que antecedem o desastre, que devem ser preservadas.
Ao fundo da primeira imagem é possível ver a Escola de Paracatu de Baixo e na segunda a Igreja de Santo Antônio, edificações com as marcas da lama de rejeitos. Fotos: Maria Luísa Sousa
Em contexto semelhante, representantes da comunidade de Bento Rodrigues, quando mostraram os templos religiosos ou o que sobrou deles na localidade atingida, destacaram a luta pela restauração da Capela das Mercês, em andamento, e desejo pela reconstituição da Capela de São Bento, um importante símbolo de fé e memória coletiva. Resgataram que, ainda hoje, a comunidade celebra a festa do padroeiro nas ruínas, constatando a falta de centralidade das vítimas no processo de reparação e negligência diante de seus modos de vida.
Cabe lembrar que os territórios onde se encontram as comunidades atingidas do município de Mariana teve sua formação há mais de 300 anos. Para entender os danos e o que não está sendo restituído, é fundamental a compreensão de como foram formadas e viveram ao longo dos séculos até o rompimento, bem como as relações que se estabeleciam entre elas, as que foram profundamente desestruturadas pelo desastre e pelas demoras do processo de reparação.
Uma preocupação também citada durante a visita, é a situação das peças religiosas atualmente restauradas e armazenadas na Reserva Técnica. Moradores questionaram a destinação desses itens, muitos dos quais foram, no passado, adquiridos, e mais recentemente resgatados da lama pela própria comunidade.
Capela de Nossa Senhora das Mercês e cercamento ao redor das ruínas de São Bento, em Bento Rodrigues. Fotos: Maria Luísa Sousa
Leite derramado
Outro ponto sensível abordado foi a situação dos animais que permanecem na posse das pessoas atingidas pela lama. Segundo os relatos, os recursos para alimentação foram suspensos, dificultando ainda mais a sobrevivência. Nesse contexto, ficou evidente que além dos prazos incondizentes com a realidade relacionados aos animais que estão na Fazenda da Fundação Renova, após a repactuação, a situação em relação ao fornecimento de alimentação e trato dos animais se agravou ainda mais. Muitos dos atingidos têm sua vida profundamente ligada à criação de animais, que representa não só uma fonte de renda. Com as novas condições impostas e o longo tempo de espera por reparações efetivas, grande parte dessas famílias viu seus rebanhos diminuírem, o que acentuou ainda mais o empobrecimento forçado. Como exemplo disso, Marino D’Ângelo, atingido de Paracatu de Cima, mencionou que a Associação dos Produtores de Leite de Águas Claras e Região vive uma grande decadência, tendo perdido mais da metade de seus associados desde o dia do rompimento, no entanto, antes “era uma grande organização que oferecia os melhores preços”.
Durante o encontro em Paracatu de Cima, representantes de outras comunidades rurais também marcaram presença e reforçaram a necessidade urgente de medidas concretas que considerem a especificidade das populações rurais, destacando a importância da consideração dos animais para a retomada da dignidade e da autonomia dessas comunidades. Cabe destacar que, após a homologação da Repactuação e extinção do PG07, o trato e a assistência veterinária que era fornecido para os animais foram cortados, sem aviso prévio, deixando as famílias e os animais desamparados para os devidos cuidados. Tratada por muitos como uma questão individual, a quantidade expressiva de casos que envolvem a situação dos animais fazem coro ao que Mauro da Silva, atingido de Bento Rodrigues, reivindicou enquanto coletividade, afinal, “o coletivo é composto por vários indivíduos”.
O almoço durante a visita no dia 8 de abril foi servido por uma família de Paracatu de Cima que ainda reside em moradia temporária. Fotos: Maria Luísa Sousa
Todo dia eu sou daqui
A proposta atual do recente acordo homologado prevê, entre outras medidas, a desterritorialização de parte das comunidades de Paracatu de Baixo e Bento Rodrigues — uma medida vista com preocupação por moradores e lideranças locais, que temem a perda de vínculos históricos, culturais e afetivos com a terra onde viveram por gerações. Sem certeza da destinação das localidades e diante das aprovações de novos projetos minerários nos arredores, há um grande receio de que os empreendimentos se apropriem do espaço. No contraponto da incerteza do futuro, o cotidiano é povoado por pessoas que resistem mantendo o que ainda resta de vida naqueles solos.
Um exemplo dessa relação é o grupo Loucos por Bento, formado por moradores que retornam todos os finais de semana ao local de onde saíram por um deslocamento compulsório. Mesmo com o cenário de destruição, essas pessoas mantêm viva a conexão com o lugar, cuidam do que restou e organizam atividades, sempre resistentes à ideia de abandono de suas histórias. A ação, no entanto, resulta, por vezes, em conflitos com as empresas responsáveis pelo desastre, revelando as disputas pela posse entre moradores e mineradoras. Mônica dos Santos, atingida de Bento Rodrigues, contou que logo após o rompimento, mesmo sem combinarem, vários moradores se deslocavam para perto do território, mesmo quando ainda era proibida a entrada: “ficávamos ali no alto do morro, sentávamos, olhávamos, porque a gente não podia entrar, mas a gente sempre se encontrava aqui”.
Durante toda a visita, os presentes informaram que até hoje o Governo Municipal não realizou qualquer diálogo direto para discutir como se dará, na prática, o processo de desapropriação e tombamento previsto na repactuação. Se considerada a prática das comunidades, qualquer proposta que envolva o uso do território para outras finalidades, precisa, antes de tudo, considerar o desejo de permanecer, respeitar os vínculos existentes e garantir o direito à decisão informada das pessoas atingidas, algo que, até o momento, não foi oferecido.
Moradores falam sobre a relação profunda com o território de origem. Fotos: Maria Luísa Sousa
Ao fim do dia, o representante do Ministério Público Federal agradeceu a oportunidade de conhecer mais de perto a realidade vivida pelas comunidades atingidas e destacou a importância do contato direto com o território para compreender a complexidade do processo de reparação. Ele também reconheceu o trabalho realizado pela Cáritas MG como Assessoria Técnica Independente, ressaltando o papel essencial da entidade na escuta qualificada, no apoio à organização comunitária e na construção de propostas baseadas nas necessidades concretas dos atingidos. A agenda contou ainda com a participação de pesquisadoras do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG), que acompanham criticamente os desdobramentos do processo de reparação e reforçam a importância da produção de conhecimento acadêmico comprometido com os direitos das populações atingidas, com a justiça socioambiental e com a preservação da memória dos territórios.
Instituições como Cáritas Minas Gerais e Gesta/UFMG desenvolvem ações ao lado das pessoas atingidas na busca por justiça. Fotos: Maria Luísa Sousa
Por Maria Luísa Sousa e Quel Satto, da Cáritas MG|ATI Mariana