Você sabe o que é a repactuação do processo de reparação pelos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão? Para falar sobre a repactuação é importante voltar no tempo, mais precisamente no mês de março de 2016, quatro meses após o rompimento, quando foi assinado o Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (T-TAC). Entretanto, o modelo de governança desenhado no T-TAC recebeu críticas de atores judiciais e da sociedade, principalmente ligadas à necessidade de participação popular no processo de reparação. Diante desse contexto, em junho de 2018 foi assinado o Termo de Ajustamento de Conduta - Governança (TAC-GOV), considerado a segunda fase do processo de solução de conflitos ligados ao rompimento da barragem.
O documento foi considerado o pontapé inicial e o alicerce do processo de reparação, que buscou soluções extrajudiciais. Para isso, foram instituídos 42 programas socioambientais e socioeconômicos, elaborados e executados pela Fundação Renova, instituição de direito privado e sem fins lucrativos, criada pelas empresas mineradoras.
O TAC-GOV trouxe no seu texto modificações e aprimoramentos importantes em relação ao T-TAC, tendo como principais pontos almejados a alteração do processo de governança previsto no T-TAC para definição e execução dos programas, projetos e ações; melhoramento dos mecanismos de efetiva participação das pessoas atingidas em todas as etapas do T-TAC e TAC-GOV e o estabelecimento de um processo de negociação visando à eventual repactuação dos programas.
O acordo estabeleceu um prazo de dois anos para a repactuação, somente depois que houver: a) a organização dos atingidos de modo a atuarem ativamente do processo; b) produção de documentos e laudos técnicos dos experts independentes sobre a extensão e profundidade dos danos.
Segundo o Ministério Público Federal, esses dois elementos, mais os saberes locais e técnicos, são essenciais para a definição de novos programas e modelos reparatórios. Mas este prazo venceu, sem que a repactuação fosse feita, bem como a participação organizada das pessoas atingidas no processo, conforme consta no Relatório Temático - Mariana e Bacia do Rio Doce de novembro de 2023, da Comissão Externa sobre Fiscalização dos Rompimentos de Barragens e Repactuação (CEXMABRU).
Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG) destruído pela lama. (Foto: Isis Medeiros/MAB)
Mas, afinal, o que é a repactuação?
Como é possível observar, o caso do rompimento da barragem de Fundão apresenta um histórico de diversas tentativas de conciliação, dividida em quatro etapas, que incluem a formulação de um T-TAC em março de 2016; o Termo de Ajustamento Preliminar (TAP), assinado em janeiro de 2017; o Termo Aditivo ao TAP (A-TAP) assinado em novembro de 2017; e, por último, o TAC Governança, assinado em junho de 2018. Portanto, nesse sentido, a repactuação pode ser entendida como mais uma tentativa de conciliação.
De acordo com a avaliação da Comissão Externa sobre Fiscalização dos Rompimentos de Barragens e Repactuação, a expectativa do acordo é que precisa devolver algum tipo de normalidade para a vida das pessoas atingidas e, também, ser um marco para o desenvolvimento da região, pautada em uma nova estrutura de exploração econômica que afastem estas comunidades o medo de um novo rompimento de barragem e da dependência de um modelo econômico que agride o meio ambiente e tem impacto direto sobre a qualidade de vida de milhões de pessoas.
Onde estão sendo realizadas as discussões sobre a repactuação?
Com o vencimento do prazo de dois anos e a redistribuição dos processos ativos sobre o Caso Mariana do TRF1 ao novo Tribunal Regional Federal – TRF da 6ª região (TRF6), nos termos da Lei 14.226 de 2021, o desembargador Federal Ricardo Machado Rabelo passou a ser responsável pelo Projeto Conciliatório de Repactuação oficializado pelo Ato nº 1, de 17 de março de 2023 do Gabinete desse desembargador. Anteriormente, as discussões sobre a repactuação eram conduzidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Criação da Mesa de Repactuação no Caso da Tragédia de Mariana
Em 15 de maio de 2023 o TRF6 realizou solenidade de abertura da Mesa de Repactuação do acordo celebrado após o rompimento da barragem de Fundão, que reuniu autoridades dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo dos estados de Minas Gerais e Espírito Santos, a fim de tratar do novo processo de repactuação proposto pela corte federal mineira.
O que é a Mesa de Repactuação?
Foi criada com a intenção de ser uma soma de esforços, com o objetivo de encerrar, definitivamente, os diversos conflitos envolvendo o desastre humanitário e ambiental por meio de um procedimento extrajudicial de conciliação, de diálogo e consensos.
Como funciona a Mesa de Repactuação?
As reuniões ocorrem, em média, duas vezes por mês, segundo informações no site do TRF6. Os encontros buscam atender a necessidade de transparência e amplitude de informação dos integrantes da Mesa de Repactuação.
Entretanto, ficou expresso no Relatório Temático - Mariana e Bacia do Rio Doce de novembro de 2023, da CEXMABRU, que o “processo de repactuação deve considerar e aprimorar a participação dos atingidos e atingidas, que até aqui não tiveram meios de participação real na construção do acordo e nem o poder para influenciar nas negociações, para apresentarem diretamente suas demandas e necessidades”.
Quem participa da Mesa de Repactuação?
Os debates contam, em geral, com a participação de representantes e de membros de órgãos do Poder Público, como:
Governo Federal;
Governos dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo;
Defensoria Pública dos dois Estados e da União (DPES, DPMG e DPU);
Ministério Público Federal;
Ministério Público de Minas Gerais;
Ministério Público do Espírito Santo.
O que a Mesa de Repactuação discute?
Uma série de reuniões já foram realizadas para discutir os termos do acordo ao longo de 2023. Estima-se que, pelos menos, mais de 30 reuniões foram realizadas até o presente momento, levando em consideração que, no dia 28 de setembro de 2023, o TRF6 divulgou em seu site que, “desde a criação da Mesa, foram realizadas 24 (vinte e quatro) reuniões coletivas e outras de assuntos mais específicos, com representantes de instituições públicas e das empresas SAMARCO, VALE e BHP". Conforme publicações no site do TRF6, após setembro de 2023, novas reuniões da mesa ocorreram, no intuito da assinatura final do acordo, que não ocorreu.
Entretanto, os termos do acordo não foram tornados públicos, apenas os temas discutidos, que foram: reassentamento, pesca, rejeitos, indenizações, cláusulas gerais, situações específicas de Indígenas, Quilombolas e Povos e Comunidades Tradicionais e questões ambientais. São diversas frentes de negociações e discussões técnicas e jurídicas.
Segundo o TRF6, as discussões ocorrem com apoio de técnicos e assessores das mais diversas formações profissionais, como: meio ambiente, saúde, pesca, indenizações e transferência de renda, saneamento, governança, reassentamento, participação social e deliberação direta das comunidades, fundo de enchentes e anexo de municípios, socioeconômico, ambiental, Fundo Rio Doce, novos projetos estaduais, situação dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, Infraestrutura e PRE (Programa de Incentivo à Educação, à Ciência, Tecnologia e Inovação, à Produção e de Retomada Econômica).
Em que estágio está a repactuação?
As negociações foram paralisadas no dia 05 de dezembro de 2023, de acordo com nota conjunta assinada no dia 06 de dezembro de 2023 pelo Governo Federal, Governo de Minas Gerais, Governo do Espírito Santos, MPF, MPMG, MPES, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública de Minas Gerais e Defensoria Pública do Espírito Santos. A paralisação é sem data prevista de retorno, “em razão da recusa das empresas responsáveis pelo rompimento, Vale, BHP e Samarco, em apresentar uma nova proposta financeira, conforme calendário previamente estabelecido”.
No dia 05 de dezembro de 2023, o TRF6 emitiu um comunicado informando que, com o fim do ano e o recesso forense, estão suspensas as rodadas da Mesa de Repactuação e “novas rodadas serão agendadas para o início de 2024”.
Após o fim do recesso de final do ano, o site do TRF6 informou no dia 17 de janeiro de 2024 que os trabalhos da Mesa de Repactuação retomaram, com reuniões realizadas no dia 15 e 16 de janeiro e que, em breve, serão agendadas mais reuniões com as Instituições de Justiça.
O que está sendo previsto, até o presente momento, no texto da repactuação?
No dia 19 de dezembro de 2023 foi realizada uma audiência pública da Comissão Externa sobre Fiscalização dos Rompimentos de Barragens e Repactuação, realizada na Câmara dos Deputados.
Os temas foram sobre a paralisação das negociações no dia 05 de dezembro de 2023 e a repactuação do acordo de Mariana, que contou com a presença de diversas autoridades do Governo Federal, Governo de Minas Gerais, Defensoria Pública da União (DPU), Advocacia Geral da União (AGU), Ministério Público Federal, entre outras.
Durante a audiência, foram feitas falas importantes sobre o conteúdo do texto da repactuação, que ainda é desconhecido para as pessoas atingidas. De acordo com o Dep. Rogério Correia (PT/MG), coordenador da Comissão Externa, o desembargador Ricardo Rebelo, do TRF6, afirmou que já há um documento da repactuação em fase final de elaboração, com a estimativa de ser concluído entre os meses de janeiro e fevereiro e expectativa de que possa haver algum tipo de acordo até março.
O deputado afirmou que é um documento elaborado a várias mãos e que há quase uma unanimidade em torno do conteúdo.
No documento ainda não entra a questão dos recursos, mas como seria a gestão do processo, a governança e também os objetivos e metas a serem alcançadas.
Segundo o deputado, de acordo com o que foi divulgado na imprensa, as empresas chegaram a oferecer um valor de 42 bilhões para a quitação da repactuação, mas a expectativa dos governos era em torno de 126 bilhões. Estão fora dos valores que estão sendo discutidos a questão relativa à retirada dos rejeitos (tanto da barragem de Candonga quanto do leito e das margens do rio) e também as indenizações individuais.
Júnior Divino Fideles, advogado adjunto da AGU, afirmou que o governo federal tem participado do debate da repactuação e que o texto produzido “dá cara para a repactuação, um texto muito próximo de uma finalização, carecendo apenas de ajustes finais. É um texto muito bom”.
Na avaliação do desembargador, o texto atende o desafio de promover a reparação, numa perspectiva de dois grandes focos: o meio ambiente e as pessoas atingidas, que essencialmente almeja recuperar aquilo que ainda é possível recuperar e mitigar os danos, ou compensar os danos socioambientais quando não é possível mais a reparação integral.
O texto prevê um fundo para o enfrentamento dos danos à saúde pública e uma série de ações e programas de retomada econômica nas mais diversas áreas, nos mais modelos e execução, que vai desde a execução direta pelas próprias pessoas atingidas, como também a execução mediada pelo Estado (União, Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e, inclusive, municípios).
Na avaliação de Fideles, o texto pode ser concluído no prazo indicado pelo desembargador Ricardo Rebelo, mas para que haja um acordo é necessária uma mudança significativa de posição das empresas e se não haver essa mudança, não acredita na possibilidade de repactuação “nem em março, nem em junho, em momento algum”.
Carlos Bruno Ferreira da Silva, Procurador de Justiça, afirma que é um texto que “prevê a retirada de rejeitos, garante saúde, garante saneamento, garante indenização, garante um programa de transferência de renda, garante um fundo para o Rio Doce que é um fundo muito provavelmente maior do que o próprio Fundo Amazônia, garante projeto de iniciativa popular. Não tenho dúvida em afirmar que é um bom acordo para os atingidos do Rio Doce, é um acordo que, definitivamente, começaria a reparar esse enorme mal causado há mais de oito anos”.
Sobre o valor, divulgado pela imprensa, o procurador afirma que é baseado em estudos técnicos e esse valor é um valor que deve ser discutido a sério pelas empresas.
Por que não têm pessoas atingidas na Mesa de Repactuação e o que está sendo discutido sobre a participação das pessoas e o controle social do novo acordo pactuado?
O processo de mediação, presidido e conduzido pelo TRF6, segue uma cláusula de confidencialidade, regida pelo pelo Código de Processo Civil (Lei Nº 13.105, de 16 de março de 2015), em sua Seção V, no artigo 166:
Art. 166. A conciliação e a mediação são informadas pelos princípios da independência, da imparcialidade, da autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada.
Portanto, até o presente momento, não há previsão da participação de pessoas atingidas na Mesa de Repactuação.
Júnior Divino Fideles, advogado adjunto da Advocacia Geral da União, durante a Audiência Pública e Deliberação da Comissão Externa para fiscalização dos rompimentos de barragens e repactuação, realizada no dia 19 de dezembro de 2023 na Câmara dos Deputados, fez a seguinte reflexão: “Fazer aqui um debate a despeito da cláusula de confidencialidade existente. E esse tem sido o nosso pedido ao desembargador Ricardo, para que a gente flexibilize essa cláusula de confidencialidade, para que possamos fazer um debate sobre o conteúdo, sobre o mérito desse texto, com toda a sociedade civil interessada, com todos os atingidos, com o parlamento, com as organizações que vivem na bacia do Rio Doce”.
Isabella Karen Araújo Simões, da Defensoria Pública da União, na mesma audiência, afirmou: “A Defensoria Pública da União especificamente, mas praticamente todas as Instituições de Justiça, apoiaram fortemente o pleito da União de mitigação dessa cláusula de confidencialidade, para que os atingidos e a sociedade civil de uma forma geral tivesse acesso a, pelo menos, dentro do possível e dentro do razoável, as cláusulas de negociação”.
É importante destacar também, que no dia 18 de julho de 2023, as pessos atingidas receberam uma visita de representantes do Governo Federal na sede da Assessoria Técnica Independente da Cáritas Diocesana de Governador Valadares. O encontro, chamado de “Convite ao Diálogo”, fez parte de uma rede de ações promovidas pelo Governo Federal com o intuito de propor, articular e implementar mecanismos de participação social na bacia do Rio Doce.
A reunião com as pessoas atingidas em Governador Valadares foi um dos 15 espaços de escuta entre o Governo Federal e a população, realizado em 15 localidades ao longo da Bacia do Rio Doce, entre os dias 14 e 24 de julho nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Após os espaços de escuta, foi elaborado um relatório de campo entregue para o TRF6, com as seguintes questões à respeito da participação das pessoas atingidas no processo de repactuação:
Atingidos na mesa de negociação;
Conselho e Casa do Governo Federal;
Participação das comunidades para poder deliberar sobre a destinação dos recursos;
Controle Social sobre a aplicação dos recursos e monitoramento das políticas implementadas.
Já foram feitos outros acordos desse tipo?
A resposta é sim. No dia 25 de janeiro de 2019 a barragem da Mina do Córrego do Feijão, da mineradora Vale, em Brumadinho, rompeu e causou a morte de 272 pessoas e contaminou a bacia do Rio Paraopeba com minério.
O Acordo Judicial para Reparação Integral Relativa ao Rompimento das barragens B-I, B-IV e B-IVA na Mina Córrego do Feijão foi assinado, no dia 04 de fevereiro de 2021, pelo Estado de Minas Gerais, Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, Ministério Público Federal e a empresa Vale S/A.
O acordo teve como objetivo definir as obrigações de fazer e de pagar da Vale, visando à reparação integral dos danos, impactos negativos e prejuízos causados em decorrência do rompimento. Para isso, o acordo foi dividido em capítulos, com a discriminação dos valores financeiros correspondentes a cada Anexo, que trata-se de um grupo de medidas de reparação. Os Anexos são:
Anexo I - Programa de Reparação Socioeconômica;
Anexo II - Programa de Reparação Socioambiental;
Anexo III - Programa de Mobilidade;
Anexo IV - Programa de Fortalecimento do Serviço Público.
O acordo conta com uma quantia na ordem de R$ 37.689.767.329,00 (trinta e sete bilhões, seiscentos e oitenta e nove milhões, setecentos e sessenta e sete mil, trezentos e vinte e nove reais), sendo que o valor do teto (máximo que seria investido, custeado despendido pela Vale no cumprimento das obrigações da reparação socioeconômica e compensação dos danos socioambientais) não inclui: indenizações referentes aos direitos individuais; restauração e recuperação socioambiental integral; execução de demandas emergenciais, exceto pagamento emergencial, entre outras reparações.
Há questões específicas do acordo que também são importantes destacar, tais como:
As medidas implementadas pela Vale são acompanhadas por Auditorias Externas Independentes (“Ambiental” e “Socioambiental”);
Foram fixados prazos e marcos intermediários e finais de entrega dos programas e projetos;
A Vale continuou realizando o pagamento do auxílio emergencial, nos mesmos moldes de quando da assinatura do acordo, ininterruptamente por mais de três meses;
A homologação judicial do acordo acarretou a suspensão ou extinção, total ou parcial, dos pedidos indicados no Anexo VII (Pedidos Extintos ou Suspensos nas Ações Civis Públicas), com efeitos diferenciados nas ações judiciais em curso;
A secretaria executiva para articular as ações dos compromitentes no Acordo está sendo exercida pelo Governo Estadual, por meio da coordenação do Comitê Gestor Pró-Brumadinho.
O papel das Assessorias Técnicas Independentes
Com a Assessoria Técnica Independente - Cáritas Diocesana de Governador Valadares (ATI CDGV) em campo a partir de fevereiro de 2023, as pessoas atingidas do Território 4 (Governador Valadares e Alpercata) passaram a dispor de suporte técnico na busca pela garantia da reparação integral pelos danos causados em decorrência do rompimento da barragem de Fundão.
Em menos de um ano de atuação, a ATI - CDGV realizou 62 assembleias de consolidação das Comissões Locais de Atingidos e Comissão Local Territorial, formações sobre a governança do processo reparatório, controle social e regimento interno das comissões, apoio na construção de ofícios entregues às Instituições de Justiça e Governo Federal com os danos e demandas do território, apoio às pessoas atingidas em reuniões e audiências pública, realização de plantões de atendimento para garantir a participação informada, entre outras ações que contribuem para o fortalecimento da população atingida na busca organizada pelos seus direitos.
Por Salmom Lucas, da Assessoria Técnica Independente - Cáritas Diocesana de Governador Valadares