Imagine que, de repente, uma empresa chega em sua casa e diz precisar comprar o seu terreno para uma determinada produção. Como você reagiria sabendo que terá que fixar moradia em um novo local, longe de onde viveram gerações de sua família e de onde você retira todo o seu sustento? E, além disso, como se sentiria se passasse a viver em um lugar que, anos depois, é impactado pela mesma empresa que te retirou da sua terra de origem?
É isso o que vem acontecendo com 9 das 16 famílias reassentadas nas comunidades de Córregos e de Gondó, na zona rural de Conceição do Mato Dentro-MG. Há cerca de 15 anos, moradores da comunidade de Água Santa/Mumbuca, onde hoje está localizada a barragem de rejeitos da mineradora Anglo American, enfrentaram o que chamamos de deslocamento compulsório.
A moradora Selma Rodrigues, reassentada em Gondó/Diamante, conta que, na época, eles não foram devidamente informados sobre o que seria produzido ou construído nos terrenos onde viviam. “Eles chegaram falando que ia comprar pra criar égua e pra plantar eucalipto. Depois que passou muito, muito tempo, que a gente ficou sabendo que era pra mineração e que lá ia ser uma barragem de rejeitos”.
Selma Rodrigues conta que não foram devidamente informados sobre o que seria produzido em seu terreno.
Já Francisca Pimenta, que foi reassentada em Córregos, afirma que “eles chegaram lá em casa falando que queriam o terreno pra tirar cascalho. Ficamos 2 anos, depois, eles falaram que iriam ficar lá pra comprar terras. Só depois falaram que iam usar para a mineração e que lá em casa era o lugar próprio”.
Vale lembrar que, em casos de reassentamentos involuntários como esses, é necessária a garantia de que as pessoas sejam deslocadas para uma região onde possam ter uma qualidade de vida igual ou melhor à que tinham anteriormente.
Porém, de acordo com a nota técnica sobre as famílias reassentadas, produzida pela equipe Cáritas|ATI 39, os moradores relatam “piora nas condições de vida e, consequentemente, fragilidades no âmbito socioeconômico”. Impactos como a falta de terra, o desemprego, a insegurança alimentar, a perda de acesso a bens e serviços e a desarticulação social são os mais comuns.
Desmonte de rochas na vertente oeste da Mina do Sapo impacta a comunidade de Gondó.
Selma nos conta que a sua ida para Gondó foi muito sofrida. “Inclusive no dia da gente trazer as criação, trazer a mudança, não tivemos ajuda de nada, nada. Eu mais o Jesos levantamos três horas da manhã, pusemos eles [o gado] na estrada, porque naquele tempo podia transportar pelas estradas, [...] então nós viemos tocando eles até aqui de cavalo. [...] E as outras coisas, né, os moveizinhos que a gente tinha, pagamos caminhão, não tivemos ajuda nenhuma”.
Ela lembra, também, que a adaptação ao novo local foi difícil, pois receberam uma casa muito menor do que tinham em Água Santa. “A casa era muito pequena, tinha só os quartos. Mas essa cerca aqui em volta não tinha, foi meu irmão que fez pra mim. E as minhas coisas que eu trouxe, igual eu tinha, né, a casa de fazer farinha, a casa de fazer biscoito, fazer doce. Eu tinha tudo separado. Aqui eu tive que deixar minhas coisas no meio do terreiro, no tempo, estragando. Aí comprei uma lona, pus por cima até eu poder fazer uma outra casinha pra poder colocar. [...] Nós praticamente fizemos uma outra casa; que o mesmo tanto de quarto que a casa tem, dormitório, eu fiz ali”.
Francisca também comenta que o começo da vida em Córregos foi de “muito serviço”, “porque aqui não tinha, assim, tinha essa casa que tava feita, sabe? Mas não tinha terminado. Com o dinheiro que a gente trabalhava, a gente foi terminando essa aqui, terminou a outra lá de baixo, foi consertar o quarto ali em cima. Começou tudo de novo. Fomos roçando pasto... Foi a maior bagunça só de serviço”.
Francisca comenta que seu processo de reassentamento foi muito trabalhoso
Já para Erenilde Pimenta, moradora reassentada de Gondó, a adaptação inicial ao novo local foi tranquila, “porque não tinha barulho nenhum”. Porém, “depois, com o tempo, eles começaram a mexer lá no alto e agora tá esse barulho, essas máquinas e essa poeirada no meio da estrada. Colocaram a gente aqui, a gente pensou que nunca ia ter essa mina aqui perto da gente, mas com pouco tempo começou”.
Além disso, hoje a sua família enfrenta um grande desafio: aos 82 anos, o seu pai, nascido e criado na comunidade de Água Santa, sente o desejo de retornar à comunidade. “Um dia meu marido pegou ele em cima da janela, pulando a janela pra fugir. Outro dia meu marido pegou ele na porteira. [...] Ele falou que essa casa não é a dele e que ele tava indo pra casa dele, porque ele lembra da outra, aí fica querendo fugir pra Água Santa”.
Famílias tiveram que se readaptar à nova terra para produção
Ao saírem de suas terras, as famílias reassentadas também deixaram para trás boa parte do trabalho que garantia o sustento de suas casas, como o caso dos alimentos produzidos nos quintais. Árvores cultivadas por gerações foram substituídas por mudas que, na prática, só trouxeram resultados após anos de muito trabalho. As pessoas atingidas relatam que foi como começar tudo do zero.
“Até que o que eu tinha lá, eu trouxe muda, né. A única coisa que eu não trouxe foi muda de algumas goiabas, umas goiabas vermelhas, menina, que eu fazia muito doce também. [...] Foi muito corrida a nossa mudança, sabe? Muito corrida mesmo. Então não deu tempo porque eu sozinha, o Jesos trabalhando, os meninos estudando, eu não dei conta. Mas as outras plantas até que assim, eu consegui. Às vezes um colega tem uma muda e dá, às vezes eu compro também, igual a muda de laranja, de mexerica, tudo eu que comprei”, afirma Selma.
Somente após dois anos de reassentamento, Selma e Jesoares puderam retomar a renda a partir de suas produções
Selma ainda conta que, além de não terem recebido nenhum auxílio da empresa para a garantia da manutenção de seus modos de vida e renda, somente em 2010, após dois anos de mudança, foi que boa parte da produção começou a gerar novamente a renda da família. “Igual eu falo, né, o negócio da gente é o milho, é uma mandioca, o milho até que a gente ainda colhe com pouco tempo, né? Mas a mandioca mesmo, a laranja demora mais tempo”.
Francisca também afirma que vendia frutas e verduras quando morava em Água Santa. Quando ela e sua família chegaram em Córregos, eles precisaram roçar a terra do começo e, infelizmente, os alimentos não se desenvolveram como antes. “Depois plantou, as frutas morreram, sabe? Aí tinha umas outras que a gente foi plantando, mas elas não prosperaram, morreram todas também, aí paramos de vender. [...] Eu perguntei para os meninos que vieram aqui, eles falaram que tinha que juntar na hora que as folhas fossem adoecendo e caíssem, era pra juntar as folhas e as frutas, mas eu ia juntar todas as frutas?
Depois de quinze anos de reassentamento, as famílias ainda não têm segurança sobre a posse dos terrenos
Outro problema que 9 famílias reassentadas enfrentam é a questão da regularização fundiária de seus terrenos. Todas elas possuíam propriedades rurais regulamentadas e, ao negociarem o reassentamento com as empresas Borba Gato, MMX e Anglo American, realizaram a entrega da documentação, a fim de transferir a titularidade para a empresa compradora. Essas famílias confiaram que as empresas realizariam a regularização dos documentos das propriedades de destino.
Porém, após 15 anos do primeiro reassentamento, muitas ainda estão sem o documento de titularidade da terra onde foram reassentados. A nota técnica produzida pela equipe Cáritas|ATI 39 relata que “a falta de regulamentação/regularização dos terrenos da comunidade de destino (Gondó) é uma pauta sensível na vida de todos os reassentados. Além da quebra contratual de um negócio jurídico, as famílias não tiveram o direito à propriedade, constituído no art. 5, inc XXII, assegurado, mesmo tendo o direito real de usar, gozar e dispor da coisa”.
Essas famílias seguem hoje como posseiras dessas terras, o que as impede de resolver problemas relacionados à propriedade ou de terem acesso a programas sociais, como o Luz para Todos; o PNAE; a Aposentadoria Rural; a DAP, e outros. “O que eles falaram com nós, eles não cumpriram, tá escrito na permuta. Com trinta dias eles iam entregar o documento e já tem o que? Quinze anos, né? Quinze anos não é quinze dias, então isso aí eu acho muito ruim, muito ruim mesmo, porque a gente não ter um documento de um terreno atrapalha a gente pra muitas coisas. Pra você fazer um empréstimo, você precisa do documento, da escritura. Igual, o Jesos é apaixonado por entregar leite, inclusive o moço lá de Guanhães já veio aqui e conversou com a gente, mas falou: ‘ô seu Jesos, mas infelizmente, sem a escritura do terreno, eu não posso fazer’. É o ditado: “quem não registra, não é dono”, afirma Selma.
A saudade de lá e os novos problemas vivenciados no reassentamento
Casa em Gondó nas proximidades da vertente oeste da Mina do Sapo.
Para Elisângela Rodrigues, apesar de não ter sido uma adaptação difícil em Gondó, sempre irá existir a saudade do local onde ela cresceu. “Poxa, a gente passou a infância lá, a adolescência, a gente já conhecia cada cantinho, tinha os lugares preferidos para ir, as brincadeiras, conhecia todas as pessoas dos lugares, sabia dos gostos e costumes, e aí separou todo mundo, né?”.
Erenilde afirma que viver em Gondó “é diferente [de Água Santa], porque lá era um lugar que a gente já tinha costume com os vizinhos, encontrava serviço. Aqui não. Aqui é um lugar que a gente não conhecia os vizinhos”, e complementa: “eu sinto falta do lugar que a gente morava, igual, quando a gente passa pra ir pra Itapanhoacanga, a gente passa no caminho onde a gente entrava pra lá. A gente fica com saudade do lugar da gente, né? Dos vizinhos, da paisagem, tudo dá saudade”.
Francisca também conta que “lá a coisa que eu mais sinto falta é que todos os domingos os vizinhos estavam todos reunidos, sabe? Num domingo ia pra casa de um, no outro vinham pra casa da gente. A gente convivia mais com os amigos, aqui não, aqui fica um pra um lado e outro pra outro”. Para além da perda da territorialidade; dos laços com a tradição cultural de seu local de origem; da interrupção ou modificação da produção; da alteração nos modos de vida, de trabalho e dos vínculos sociais e ambientais que mantinham; hoje, as famílias reassentadas são novamente atingidas pelos impactos que a mineradora causa às comunidades de Córregos e Gondó.
O total de 16 famílias que foram reassentadas e atualmente residem nas comunidades de Córregos e de Gondó, afirmaram que, ao longo do processo de negociação, a empresa garantiu que não seriam novamente atingidas. Hoje, porém, a comunidade de Gondó faz parte da Área de Influência Direta (AID) do Projeto Minas-Rio da Anglo American.