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Luzia Queiroz: 5 anos sem justiça

Áreas de Atuação

Confira a história de quem não perde nenhuma oportunidade de denunciar o crime por trás do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana.

Publicação: 08/12/2020


Luzia Queiroz, como muitos de seus conterrâneos, sabe falar muito bem sobre as riquezas de sua comunidade. Ela gostava de acompanhar as equipes esportivas e não deixa de lembrar do bom desempenho do time de futebol masculino de Paracatu na primeira divisão da Liga Esportiva de Mariana. Sabia que a aparência simples poderia enganar os desavisados que, à primeira vista, não enxergariam a diversidade e a história do povo que se instalou ali há tempos imemoriais. 

Natural de Ouro Preto, ela se mudou para Paracatu de Baixo para construir sua família e levou consigo a vontade que tinha, desde os doze anos, de realizar casamentos, estudou Turismo e provou para muitas noivas que era possível realizar os sonhos mais impensáveis naquela terra. Uma mulher resistente, que aprendeu a buscar forças onde menos se espera para não perder nenhuma oportunidade de denunciar o crime por trás do rompimento da barragem de Fundão e a conduta odiosa de uma empresa que se disfarça para conseguir, a qualquer custo, agradar acionistas e ludibriar atingidos.

Como era a vida em Paracatu de Baixo?

Luzia: [...] a perda foi muita. E a gente tinha também muito atleta de corrida, com muitas medalhas, alguns conseguiram recuperar as medalhas na lama. Tinham também as cavalgadas, fora as festas religiosas que eram muitas e todas as festas religiosas acompanhavam o futebol e a cavalgada. Isso tudo acabou. A gente não vê mais nada, não sabe onde que está, muitos animais adoeceram, morreram também, porque eles estavam lá em baias. Eu tenho até um vizinho que chora só de lembrar, porque aquela indumentária dele de cavaleiro foi toda embora na lama e ele sequer foi reconhecido. Eles não vão devolver essa roupa dele que era a paixão, que ele fala até hoje. E os Natais, era muita brincadeira, muita fartura, os meninos livres na rua, andando de bicicleta, corrida. A minha mesmo ficava jogando bola na casa do vizinho, era ela, meu menino, os outros e todas as crianças. E isso se manteve durante um bom tempo, os meninos jogando bola, de bicicleta, nadava no córrego. Tinha a fartura de brincar nos pés de fruta, igual a gente falava que era pé de criança, porque os meninos subiam nas árvores e a gente falava "o pé de acerola deu criança", "o pé de jabuticaba deu criança". O prazer de subir em tudo, tudo virava brincadeira.


[....]

Nos natais a gente matava porco, matava boi e avisava que ia ter. A minha sogra tinha uma horta linda, que plantava até alho, tinham verduras, frutas. A gente pegava as frutas e fazia compota para poder guardar para o ano inteiro, eu mesma fazia questão de fazer quando dava fartura das plantas para poder ter mais no futuro. Doces o pessoal fazia, não comprava! [...] Então as pessoas já estavam preparando para o Natal, porque as famílias eram super numerosas, eram grandes e, fora as famílias numerosas, tinham muitos amigos que que iam pra Paracatu, porque tinha o futebol, que era a força maior do povo, que todo mundo reunia em volta do campo para ajudar os atletas, porque o nosso Paracatu de Baixo estava na primeira divisão.

[...]

Essa é Paracatu, daqui você vê a Igreja, campo de futebol, a quadra ficava aqui. Mas esse [apontando o campo] era o lugar que Paracatu pulsava, que era o campo de futebol. O lazer maior do povo era esse campo aqui, não tinha dia não, tinha vez que eles chegavam direto da labuta e iam pro campo treinar. Então esse campo era a parte X e chave.

[...]

Aqui que eu te falei, a cachoeira está atrás desse bambuzal aqui. Então isso tudo aqui foi preenchido com lama e aqui você pode ver que o trabalho deles era a campineira e a parte que ficava mais destinada ao gado, que era dos fazendeiros, que davam emprego para o pessoal de Paracatu, lá emprego não faltava e o pessoal trabalhava demais da conta, quando eles queriam dinheiro para viajar e fazer as coisas deles, eles sabiam onde buscar. Então, assim emprego não faltava e lá para onde a gente vai o emprego vai faltar. Essa aqui era a praça, que a gente fazia os shows e a prefeitura colocava palanque, então aqui fervia o forró e tudo. O pessoal decorava muito essa praça e a gente fazia de tudo lá, tinha dia que a gente só saía de lá duas horas da manhã. 

A lama que atingiu Paracatu chegou por onde?

Luzia: Começou com parte de Paracatu de Cima e depois foi direto para Paracatu de Baixo, margeou o rio. Essa ponte branca que travou tudo, onde é a passagem pra Águas Claras, então Águas Claras ficou ilhada também. Então ninguém passava pra lá porque não tinha outro jeito de chegar, a não ser o Santa Rita Durão. Daí, essa ponte branca travou os paus, pedra, tudo que veio catando pelo caminho a fora e interrompeu a da cachoeira. E aí sim, veio aquele tsunami de lama! Eu não sei falar em altura, mas foi um monstro bem grande, é tipo aquele filme de tsunami mesmo, mas pode visualizar aquilo não com água, mas com lama. Pé de eucalipto estava carregando igual uma palhinha e aquelas de raízes profundas, árvores centenárias. Nessa avalanche de lama que veio, ela vem quebrando as casas, tudo e jogando tudo no chão. Ela margeou o rio, foi até a boca da cachoeira, teve um novo travamento com as madeiras, os paus, travou a boca da cachoeira. E a pressão era tanta, a força era tanta, que quando ela rompeu a pedra da cachoeira - eu tenho até a foto da cachoeira - que a pedra foi parar do outro lado da rua, ela arrancou a pedra de uma das quedas d'água da cachoeira. Então a gente perdeu essa beleza de lá também. Com esse travamento na boca da cachoeira, ela voltou para Paracatu e veio preenchendo Paracatu, no sentido da escola para cima. Quando ela chegou no ponto perto da minha casa, próximo a uma curva, ela fez uma pororoca! A que vinha lá do Gama juntou com a que estava voltando do que a gente chamava de "praia" e aí ela entrou na nossa casa e foi aí que consumiu tudo, que acabou com o resto de Paracatu. Mas assim que a pedra da boca da cachoeira rompeu, Paracatu toda virou tipo um tanque, que é quando a gente tira a tampa e ela esvazia, então parte da lama foi embora, escoou e foi toda embora. Nisso, o que ficou ali era um lamaçal mole, aquele trem fedorento, meu marido ainda me reportou que o cenário foi de guerra, veio aquela poeira vermelha, depois veio um cheiro horrível parecendo enxofre e só viu animais gritando, casa caindo, foi aquela bagunça. Dizem que foi um terror mesmo, um verdadeiro filme de horror.


Como tem sido o processo de negociação e diálogo do reassentamento? Mudou alguma coisa durante a pandemia?

Luzia: A gente é que tem levado  Paracatu a trancos e barrancos, brigando, questionando. Muita gente saiu porque dizia que a comissão não ia dar em nada, que a empresa era muito forte e que a gente tinha que pegar o que eles dessem e partir para frente e seguir a vida. Mas não pode sabe, não dava pra abandonar nosso lugar desse jeito. Mas foi muita, muita luta, tinha dia que a gente participava de 5 reuniões. Era o dia inteirinho sem comer, só com um lanchinho, pra não perder o fio da meada, porque se você faltasse algumas reuniões, ficava totalmente sem saber nada porque eles galopam demais da conta e o nosso entendimento era mais curto, mas eles não queriam e não faziam questão de colaborar conosco. Foi o pouco de conhecimento que eu tive que me ajudou a chegar até aqui, porque no Turismo deu pra ver de tudo um pouco. Então a gente foi caminhando e caminhando que a gente chegou até aqui e aguentou esse tempo inteirinho desse processo, foi com muita conquista que a gente teve a reformulação do cadastro que durou seis meses, teve a matriz de danos também durou um bom tempo.

[...]

Eu falei, seria bom essas pessoas que falam essas coisas entrarem para a vida dessa pessoa e tomar a vida dela, mas não é pra receber o cartão não, é para preparar para o dano, viver com a ferida que está aberta no peito de cada um. Não tem a terra para voltar, não tem o seu álbum de casamento pra você ver, não tem a sua terra para passar para o filho, tem um filho mas não sabe nem como é que ele vai viver.

[...]

A pandemia é só pra nós, né? Porque eles continuam a fazer as maldades, as atrocidades deles. [...] E quando a gente quer fazer fiscalização também não pode, outro dia teve uma fiscalização que eles deram várias desculpas que não poderia ir, porque ia aglomerar, que não poderia oferecer comida, mas o pessoal bateu o pé e foi. E o que eles trouxeram de denúncia foi muito grande. A Cáritas foi, registrou, fizemos um GT e apontaram. Então a Covid está atrapalhando só nós. Só que agora a gente está nas reuniões virtuais e estamos achando estranho porque agora eles querem efetivar algumas coisas, mas até o tablet meu travou, que eles trazem o tablet pra eu participar da reunião. Mas aí no tablet eu não conseguia ver a reunião, não conseguia falar, só conseguia ouvir o que estavam fazendo lá, mas aí eu mandei pelo whatsapp que estava encerrando a reunião, tudo que está acontecendo agora não vai ser validado, porque eu não estou conseguindo falar. Eu não vou dar voto de confirmação de que a comissão participou e avançou, então encerra, anula esse GT. [...] E a gente só vai retornar quando for presencial. Porque só está servindo para validar as safadezas deles. E outra coisa também que acho estranho é que eu não sei o que está acontecendo, porque a gente faz os projetos depois de muito tempo eles chamam a gente e ficam jogando um contra o outro. Então assim, eles vão combinando entre eles e tentando criar problemas entre a gente, entre as famílias.

 

Entrevista, fotos e vídeo realizados por Marcela Nicolas e Guilherme Gandolfi, em 02 de novembro de 2020, em Mariana/MG, pela Cáritas MG. Edição Ana Júlia Guedes.

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