Há 9 anos, em 5 de novembro de 2015, o dia já se encaminhava para o final da tarde quando a barragem de Fundão da Samarco (Vale/BHP) se rompeu no subdistrito de Bento Rodrigues (Mariana/MG), despejando aproximadamente 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro na barragem de água de Santarém, no subdistrito, no Rio Gualaxo do Norte, nas comunidades em sua margem, no Rio Doce e, então, no litoral do Espírito Santo e no Oceano Atlântico. Dezenove pessoas foram arrastadas e mortas pela lama de rejeitos, outras ficaram desaparecidas por um tempo, e é sabido que uma moradora de Bento Rodrigues sofreu um aborto no mesmo dia em que precisou se salvar do mar de lama.
Pessoas, animais e casas foram arrastados, pontes e plantações foram destruídas, escolas e igrejas foram inundadas enquanto familiares buscavam notícias de seus entes queridos, e o Brasil e o mundo acompanhavam incrédulos aquele que seria considerado o maior desastre sócio ambiental do país. Torna-se relevante observar que, a partir do rompimento da barragem de Fundão, o cenário que se estabelece no território atingido corresponde a uma emergência de danos e violações de direitos em uma perspectiva contínua.
Embora as empresas envolvidas, incluindo a Fundação Renova, aleguem que o processo de reparação estaria, neste momento, próximo de sua conclusão, a realidade não sustenta essa afirmação. Permanecem demandas como a falta de acesso à água bruta e não retomada econômica, omissão na recuperação do solo, combate às diversas doenças, patologias construtivas nos reassentamentos, indenizações obstruídas, sobrecarga processual de mais de 50 mil ações judicializadas em busca de uma reparação justa e compatível ao nível de complexidade que um crime socioambiental dessa magnitude foi e, ainda é capaz de afetar na vida das pessoas atingidas. O desgaste emocional causado por anos de incerteza, aliado à persistência de desafios em áreas críticas como a restauração dos modos de vida tradicionais e a recuperação ambiental, mostra que o processo de reparação está longe de ser finalizado. Isso porque a restauração das condições econômicas e sociais depende não apenas da reconstrução física das áreas atingidas, mas também de uma abordagem intergeracional para lidar com o trauma coletivo e as mudanças nas condições de vida das famílias e de suas capacidades de reordenamento individual e coletivo e garantir autonomia.
“Na Zona Rural nós estamos abandonados. Então fica difícil que até o campo de futebol de Pedras eles não fizeram. O terreno que as pessoas plantam está cheio de lama, eles não tiraram a lama. Não indenizou as pessoas. Então nós estamos abandonados na Zona Rural.”
Marlene Martins, representante da comunidade de Pedras na Comissão de Atingidas e Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF)
Os dados de 2024 colhidos através do registro de atendimentos realizados pela equipe técnica da Cáritas MG|ATI Mariana apontam que os problemas relacionados ao reassentamento, por exemplo, e às condições de moradia demonstram, como principais desafios enfrentados pelas famílias, questões relacionadas a acabamentos (85,98% dos casos), esquadrias defeituosas (60,64%), infiltrações (32,09%) e fissuras nas construções (31,25%). Também podem ser observados problemas como déficit de área (quando são oferecidos lotes menores do que os que as famílias possuíam antes do rompimento), assim como a impossibilidade de produção agrícola e criação de animais nos reassentamentos coletivos, sem água bruta e espaço disponível para tais atividades. Os núcleos familiares que não são contemplados pelo reassentamento coletivo ainda também sofrem com a impossibilidade de retomar suas formas de produção e atividades econômicas. Em todas as comunidades há casos de famílias que perderam suas fontes de renda e ainda não conseguiram recuperá-las após o rompimento.
“O que temos observado, como ATI, é que com o passar do tempo o cenário de violações de direitos vem se agravando. A partir dos descumprimentos de leis e das diretrizes e normativas que foram construídas a partir de muita luta das pessoas atingidas de Mariana, vemos a criação de novos danos e de aprofundamento dos já existentes. Nesse sentido, a atuação e presença da ATI no território tem se revelado cada vez mais importante para as pessoas acessarem de modo técnico o teor das violações que sofrem cotidianamente, mas também para oferecer apoio no encaminhamento para os órgãos responsáveis por fiscalizar, diante das denúncias desse cenário desastroso.”
Marisa Versiani, coordenadora operacional da Cáritas MG | ATI Mariana
A ideia de reparação integral, conforme descrito nos princípios de justiça ambiental e validados nos acordos firmados com as famílias e comunidades atingidas, envolve muito mais do que a reconstrução de bens materiais ou o pagamento de indenizações. Ela abrange a restauração completa das condições sociais, econômicas, culturais e ambientais das populações atingidas, assegurando que as comunidades possam retomar suas vidas de maneira digna. Restituição, compensação/indenização, reabilitação, satisfação e não-repetição são pilares que estabelecem robustez no alcance da garantia integral dos direitos humanitários. O último deles suscita a necessidade de condenação dos responsáveis pelo desastre-crime, conforme sinaliza o andamento do julgamento na Inglaterra, e atenção ao avanço da mineração em territórios já atingidos. Para as comunidades de Bento Rodrigues e Camargos, a execução do Projeto a Longo Prazo da Samarco, apresentado e aprovado em 2024, é uma ameaça de que a reparação integral não seja alcançada, considerando que a atividade minerária será realizada, mais uma vez, muito próxima dessas localidades.
"Quero a minha vida de volta, quero a vida que eu projetei pra viver em Bento Rodrigues de volta. Quanto tempo mais será preciso para que eu tente voltar a viver pelo menos um pouco do que eu tinha projetado para viver em Bento? Peço a Deus para que me dê forças para que eu possa ver como nós, atingidos, estaremos daqui a mais nove anos. Será que a justiça terá sido feita?"
Marcos Muniz, morador de Bento Rodrigues
Nesse contexto, o princípio da centralidade do sofrimento da vítima surge como aquilo que deve ser aplicado nos casos de violação de direitos humanos. A proteção da dignidade do ser humano, a participação das vítimas no processo de reparação por meio de uma ótica restaurativa; a prioridade da saúde psicossocial e das necessidade das vítimas; a tratativa central voltada às vítimas e não apenas às corporações, empresas ou aos aspectos legais/administrativo que compõe a discussão de violação de direitos são indispensáveis. No entanto, quando se trata do rompimento de Fundão, mesmo após quase uma década de luta das pessoas atingidas, percebe-se a falta de participação delas em vários espaços deliberativos. A exemplo disso, a repactuação, que tem como dois de seus objetivos estabelecer novos acordos e valores e transferir recursos financeiros para que os entes da federação - União, Estados e Municípios - executem a reparação das pessoas e dos territórios atingidos pela onda de rejeitos, tem sido proposta sem a inclusão de pessoas atingidas nas mesas de negociação.
"Ninguém respeitou a gente, ninguém ouviu a gente. E agora vem uma lei do alto lá e acaba com tudo. É muita falta de respeito de não terem pelo menos vindo até nós e explicar o que está acontecendo".
Luzia Queiroz, representante da comunidade de Paracatu de Baixo na Comissão de Atingidas e Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF)
Caso emblemático contribui para o entendimento do atual cenário de condução da reparação no território atingido de Mariana
Na figura acima, é possível identificar três terrenos que eram utilizados por um núcleo familiar para criação de animais de grande porte e para manutenção de diversas culturas produtivas. Além da criação de gado para produção de leite, que era a principal fonte de renda do núcleo familiar, o que era produzido no terreno servia para o consumo no núcleo familiar, sendo o excedente utilizado na alimentação dos animais ou para comercialização.
Antes do rompimento da barragem de Fundão, a família possuía 60 vacas leiteiras, entre paridas e solteiras, e produzia uma média de 1.000 litros de leite por dia. Atualmente, o rebanho foi reduzido a 13 animais e a produção de leite caiu para 100 litros, prejudicando de forma significativa a renda e qualidade de vida do núcleo familiar. Grande parte do rebanho foi vendido para honrar com as despesas e dívidas que o núcleo familiar adquiriu após a perda da principal fonte de renda.
Nove anos após o rompimento da barragem de Fundão, o núcleo familiar ainda reside em uma propriedade alugada e não pôde retomar os modos de vida e reaver sua fonte em sua totalidade nos terrenos de origem. Até a presente data, a família ainda não foi indenizada e o processo foi judicializado pela família.