COLABORE

Mauro Marques: 5 anos sem justiça

Áreas de Atuação

Conheça a história do morador de Bento Rodrigues que teve seus planos e memórias apagados pela lama de rejeitos, em 2015.

Publicação: 14/12/2020


A história de Mauro Marques da Silva em Bento Rodrigues não se inicia no dia do seu nascimento. Herdeiro de trabalhadores escravizados que ajudaram a construir o arraial de Bento e que estiveram nas minas de ouro, Mauro, aos 51 anos, conta com saudade e orgulho de sua terra a história de quem se viu expulso de casa pelas mineradoras não uma, mas duas vezes. Das memórias de crescer ao lado de sua avó, às de ver o filho crescer andando de bicicleta o dia inteiro, Mauro, filho do zelador da Igreja de São Bento, membro da Comissão de Atingidos, sabe falar com propriedade não só da história que construiu no distrito, mas da história da construção de Bento Rodrigues, desde acampamento, à arraial, à vilarejo.


Como muitos outros atingidos, ele tinha planos e memórias que foram apagados pela lama de rejeitos, mas firme na sua fé, não tem nenhuma intenção de deixar aqueles que se acomodam na ganância e na injustiça descansarem. Atualmente é integrante do grupo “Loucos por Bento” e junto com eles, pouco a pouco, limpa e redescobre o distrito, consciente de que sem esperança e indignação, não é possível lutar por seu direito à memória e Justiça.


Você conta que as origens da sua família se misturam com as origens de Bento Rodrigues, você poderia falar um pouco mais disso?


Mauro: “Sim, Bento foi fundada em 1710 pelo bandeirante Bento Rodrigues, que após fazer uma prova de ouro no encontro do Rio Gregório com o Rio Gualaxo verificou que o local era propício à mineração de ouro. Daí resolveu fundar um acampamento, que mais tarde se transformou num vilarejo e depois num arraial, porque nas características da época, se formava um arraial quando da construção da igreja. E a primeira igreja, a Igreja de São Bento, que levava o nome do santo protetor do Bandeirante Bento Rodrigues, foi erguida em 1718, oito anos depois do descobrimento de Bento. Os meus antepassados trabalharam como escravos no garimpo e após a abolição a família ficou e foi aumentando. Alguns mudaram depois, com o progresso chegando, e outros ficaram e minha vó foi uma das que ficou[...].

Existem muitas falas no sentido de que Bento não foi construído embaixo de uma barragem, construíram uma barragem em cima de Bento. Tanto é que Bento é uma comunidade tricentenária e a Samarco, hoje, tem cerca de 40 anos de existência.”




O crime decorrente do rompimento da Barragem de Fundão prejudicou famílias inteiras, inclusive os mais jovens, que perderam, também, o lugar onde cresciam, isso também o afetou?


Mauro: “Meu filho tinha um apreço especial pelo Bento Rodrigues porque era o espaço que ele tinha para brincar, andar de bicicleta, que era o hobby dele - que chega a ser quase uma profissão - brincar com amigos, nadar nos poços, nas cachoeiras. Então, mesmo estando numa cidade durante a semana para estudar, férias e final de semana dele era em Bento. E isso foi perdido. Por consequência, meu filho sofreu preconceito na escola em que estudava. Isso porque quando as pessoas vieram para os hotéis, um dos hotéis era anexo à escola do meu filho e meu filho deixava os amigos da escola para brincar com os amigos de Bento. Isso gerou preconceito entre os alunos e professores. O que causou a perda do ano letivo do meu filho, porque ele simplesmente travou nas provas finais. Então, não só ele como as outras crianças de Bento, também vieram sofrendo preconceito ao longo do tempo e parte desse preconceito por culpa da Renova. Porque ao colocar alunos de um outro local em uma nova escola e apartar esses alunos - porque na escola em que os alunos do Bento foram estudar, era uma ala para os alunos de Bento e a outra ala pros da cidade - não tinha uma confraternização, não tinham uma troca de experiências [...].”




Se você pudesse mandar uma mensagem para toda a sociedade sobre como está a situação dos atingidos hoje, o que você diria?


Mauro: “Eu vou começar pela esperança. Hoje, nós atingidos, temos três pilares que nos mantém de pé na busca por reparação: a reconstrução, a restituição das moradias de uma forma digna, célere; Uma indenização justa, levando em conta a Matriz de Danos que foi elaborada pela Cáritas em parceria com institutos de renome e  participação do atingidos e; a punição dos culpados, porque houve uma minimização do crime, de início as empresas nos classificaram como afetados, impactados, no processo conseguiu colocar a palavra atingido, mas na realidade nós somos vítimas de um crime e esse crime se renova a cada dia através de uma instituição que foi criada para reparar esse crime e que vem, constantemente, violando os direitos dos atingidos, atingidos vítimas, a fim de não se restituir da forma com que se deve, na forma integral, justa e digna. E tem outro fator que nos causa muito aborrecimento é ver que a mesma fundação que foi criada para reparar o dano hoje ela tem dois vieses de atuação. O primeiro que é a defesa do interesse das empresas que cometeram um crime Samarco, Vale e BHP. A Fundação Renova se transformou numa quarta empresa desse grupo porque a todo o custo ela vem defendendo os interesses das empresas e, por consequência, defendendo os interesses da própria Fundação Renova. A gente vê que o atraso no processo de reparação nada mais é do que a intenção da própria Fundação Renova em se manter no mercado por mais tempo e, por consequência, garantir a manutenção dos empregos das pessoas que nela trabalham. E, diga-se de passagem, pessoas que recebem altos salários, o salário médio de um funcionário da Fundação Renova ao fim desse processo talvez seja, ao longo do tempo, maior do que a restituição de muitos moradores. Hoje se eu tivesse um grito que pudesse colocar pra fora, eu gritaria: Justiça! Justiça! Justiça! E que a Justiça, ela não seja cega como é o emblema, porque a representação da Justiça é através de uma imagem que tem os olhos vendados. Mas infelizmente a gente vê que a Justiça hoje consegue enxergar e ela enxerga só o que convém. Infelizmente, a gente vê que o poder econômico, a influência política são instrumentos garantidores nas mãos de quem detém o poder. E é muito mais fácil e cômodo para a Justiça atender os interesses dos que podem mais, dos que têm mais poder, dos que têm mais riqueza.”

 

Entrevista, fotos e vídeo realizados por Marcela Nicolas e Guilherme Gandolfi, em 31 de outubro de 2020, pela Cáritas MG. Edição Ana Júlia Guedes.

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