O cenário do trabalho diário de Simar Gonçalves de Sá é um terreno repleto de árvores frutíferas. É possível colher manga, laranja, acerola e seriguelas do pé. A horta e as galinhas complementam o ambiente e o sustento de sua família. A trabalhadora rural, que cultiva a terra para consumo próprio, viveu todos os seus 56 anos no mesmo lugar, na comunidade Malhada Preta, em Araçuaí.
Recentemente, Simar vem se sentindo temerosa quanto à preservação do lugar em que ela nasceu, se casou e criou os filhos. Sua comunidade está localizada dentro da demarcação da Área de Proteção Ambiental (APA) da Chapada do Lagoão, região de interesse de empresas de mineração. “Eu queria que a APA ficasse intocável, que a gente conseguisse plantar mais árvores, plantar as frutas nativas daqui, reflorestar”, almeja Simar.
Após reunião do Conselho da APA da Chapada do Lagoão, no dia 01º de fevereiro, foi concedido à empresa Sigma Lithium o direito de realizar pesquisa para a exploração de lítio na região. A APA está no território de Araçuaí e concentra 139 nascentes, algo muito expressivo para um local reconhecido pelas constantes secas, devido ao clima semiárido, além de abrigar comunidades tradicionais quilombolas, como Malhada Preta. Essas questões preocupam moradores, movimentos e pastorais sociais.
A Cáritas Diocesana de Araçuaí faz parte do Conselho da APA e votou contrária à permissão de autorização de pesquisa. José Nelson, voluntário da Cáritas Diocesana de Araçuaí, explica o motivo da desaprovação do pedido. “Uma das finalidades da APA, que está bem claro em seu estatuto, é cuidar pelo uso sustentável da área. Então, nesse sentido, a Cáritas, analisando o estatuto e nosso papel dentro desse espaço, acredita que a mineração é uma atividade que não cabe em uma área de preservação ambiental”.
Apesar de ser taxada como uma atividade que traz progresso e desenvolvimento, o processo minerário como um todo envolve danos ambientais e degradação da natureza, gerando conflitos socioambientais entre as populações locais e as empresas que possuem modos diferenciados de utilização dos bens naturais. O que acontece com o município de Araçuaí é um retrato disso.
É justamente pensando nos efeitos das mudanças climáticas e nos conflitos gerados pelas extrações minerais que José Nelson convida a repensar a lógica do progresso, que se diz, trazida pelos empreendimentos minerários. Para o voluntário da Cáritas Diocesana de Araçuaí, o próprio território responde essas demandas, no entanto para enxergar os caminhos possíveis é preciso entender que há outros referenciais de progresso que não são os ditados pelo capital.
“Uma APA como essa vai ajudar muito o município e a região a trabalhar com energias renováveis, energias limpas. E, também, com atividades produtivas dentro de uma dinâmica agroecológica ou de transição agroecológica, com uma produção de alimentos mais limpa. Assim é possível cuidar do meio ambiente para preservar espécies da fauna e flora... Isso tudo faz parte do cuidado da vida, e o cuidado com a vida não é só pensar no dinheiro” pontua José.
Convívio com a APA da Chapada do Lagoão
Há 41 anos, quando Vanderlei Pinheiro de Souza nasceu, a Chapada do Lagoão ainda não era uma APA, isso só veio a acontecer em dezembro de 2007, por meio da lei municipal nº 89 que regula as especificidades e os usos possíveis desse espaço. Vanderlei, assim como toda a sua família, nasceu na comunidade de Tesouras. Seus pais se mudaram para São Paulo quando ele tinha 5 anos, mas a distância do território durou apenas um ano, ele voltou a Tesouras aos 6 anos de idade. Já nessa época, ele começou a acompanhar os pais e avós no campo, aprendendo assim a lavra da terra, profissão que exerce até hoje.
Hoje, Vanderlei é o presidente do Conselho da APA da Chapada do Lagoão. A rotina de trabalho dele é bem parecida com a de Simar. “Hoje, eu estou mais no plantio do feijão, do milho, das hortaliças. Mas no passado eu já plantei mandioca, abacaxi...Tenho vaca para tirar leite para os filhos. É para consumo próprio, mas, o que a gente não consegue consumir, vende para um vizinho que procura..”, pontua Vanderlei.
As APAs são áreas criadas para a conservação ambiental, onde há uma limitada ocupação humana e em que determinadas atividades são permitidas, desde que sejam sustentáveis e não ameacem os recursos ambientais presentes no perímetro.
Os projetos de preservação ambiental costumam ser sondados por desconfiança e falsas informações. Simar relata que isso não foi diferente da área de Araçuaí, muitas pessoas acreditam que não poderia mais prover seu sustento na localidade. “Na época, houve até algumas famílias que resistiram de colocar as casas delas na área da APA. Isso porque algumas pessoas eram muito mal informadas e acreditavam que não iam mais poder mexer na terra, mas na realidade não era bem isso. Hoje todo mundo já se acostumou com a ideia que estamos na APA e temos que lutar por ela”.
A APA da Chapada do Lagoão abrange uma área de 24.180 hectares, o equivalente a 10,78% da área do município de Araçuaí. Residem dentro dessas fronteiras 399 famílias, que sobrevivem, em sua maioria, da agropecuária familiar. As comunidades Girau, Igrejinha/São Vicente, Corguinho, Barriguda do Meio e de Cima, Quatis, Córrego do Narciso de Baixo/Meio, São Pedro do Córrego do Narciso, Tesouras de Cima, Neves, São José das Neves, Brejo do José Vitor, Santa Rita de Cássia da Barriguda (Cabeceira da Barriguda), Santa Luzia do Tombo estão parcial ou totalmente dentro dos limites da área. Além de sua riqueza em fauna e flora, a APA possui uma característica hidrográfica importante para o aporte de água da região, ela concentra 139 nascentes. Por não ser uma área de preservação restrita, a população possui vínculos de lazer e até mesmo financeiros.
No entanto, houve muita luta até que fosse estabelecida e respeitada a área de preservação, os moradores tiveram que enfrentar situações que vão desde a tentativa de grilagem até a monocultura. A organização popular conseguiu resistir a investidas jurídicas de empresários e garantir o mecanismo de proteção da área, mas enfrenta hoje um outro grande desafio: a mineração.
“A gente vem numa guerra bem antiga, desde a década de 1970, com um homem rico de São Paulo que comprou uma área aqui e queria cercar uma parte imensa da chapada. Foi uma luta muito grande da comunidade, algumas pessoas foram presas, ameaçadas, mas ganharam a causa na época. Aí quando a gente pensa que a causa está ganha, veio uma outra luta que foi a monocultura do eucalipto. E agora veio o caso do lítio, que sinto ser uma provação maior porque a destruição é bem maior, se compararmos com outras regiões de mineração”, reflete Vanderlei.
O Vale do Jequitinhonha e a mineração
O Vale do Jequitinhonha é a região do país que concentra a maior reserva mineral de lítio, que se tem conhecimento até o momento. Isso vem nos últimos anos despertando a atenção de empreendimentos minerários. Mesmo que o estado de Minas Gerais seja marcado por desastres-crimes socioambientais e violações de direitos humanos por parte de mineradoras, o legislativo do estado busca formas de incentivar a exploração desse mineral.
O projeto de lei (PL) nº 1.992/2020, de autoria do deputado Doutor Jean Freire, aguarda ser debatido em plenária da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. O PL busca instaurar o Polo Minerário e Industrial do Lítio nos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, abrangendo os municípios de Araçuaí, Capelinha, Coronel Murta, Itaobim, Itinga, Malacacheta, Medina, Minas Novas, Pedra Azul, Rubelita, Salinas, Virgem da Lapa, Teófilo Otoni e Turmalina.
No entanto, há outros posicionamentos sobre os avanços da mineração na região. Alguns residentes da APA da Chapada do Lagoão, por exemplo, entendem que aquela área precisa ser enxergada como o Vale das Águas. “Nossas comunidades têm que ter forças e lutar para poder preservar nossa chapada. Que ninguém mexa na nossa chapada, que nossos filhos, netos e bisnetos possam ver isso”, enfatiza Simar, que questiona a atividade mineradora na área de preservação.
A deputada estadual Beatriz Cerqueira e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) encaminharam ao Ministério Público Estadual (MPMG) e ao Ministério Público Federal (MPF) a denúncia sobre a autorização dada a Sigma Lithium para o processo de pesquisa na APA da Chapada do Lagoão, o pedido é que os órgãos apurem o caso.
No dia 03 de maio, o MPMG, por meio de sua Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social (CIMOS), recomendou que o conselho da APA anule a votação que permitiu a pesquisa mineral na região. Entre os motivos apresentados pela instituição como fator de reconsideração, está a não realização da consulta prévia, livre, informada e de boa-fé das comunidades quilombolas Córrego do Narciso do Meio, Giral e Malhada Preta, como prevê a Convenção 69 da Organização Internacional do Trabalho (OTI). O Conselho tem 10 dias para acatar a decisão ou justificar a não aceitação do documento de recomendação.