As celebrações e festas religiosas pertencem ao patrimônio histórico de muitas comunidades em Minas Gerais, são manifestações de identidade cultural e organização social desde a origem das vilas e distritos. Em uma perspectiva histórica, uma das heranças coloniais é a disputa entre a fé e a mineração predatória que assola o estado. Na comunidade de Bento Rodrigues, a população intercede e resiste diante da escavação e suas violentas consequências. Localizada na parte alta do subdistrito, a Capela das Mercês é uma das poucas estruturas que se mantém de pé após o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão que devastou o território em 2015.
Desde a remoção compulsória do território de origem, os moradores não têm mais as mesmas condições anteriores de cuidar da capela, patrimônio do século 18. Ainda assim, a comunidade dedica parte do tempo aos finais de semana para a limpeza do local e segue celebrando missas, sepultando entes queridos no cemitério contíguo e mantendo vivas suas tradições, resistentes no tempo e no espaço, assim como a Capela das Mercês. Diante das limitações físicas e estruturais impostas pelo deslocamento forçado, cabe a Fundação Renova, instituição responsável pela reparação integral do crime, realizar as obras de restauro e manutenção do patrimônio - o que até o momento não aconteceu. A comunidade teme o futuro de destruição de cada parte que compõe a estrutura física da capela devido ao descaso e falta de reparo. O templo é testemunha da história da comunidade, espaço que ampara e acolhe muitas gerações em corpo e alma.
É importante ressaltar que a Capela das Mercês, remanescente do período colonial, estava íntegra e em pleno uso por séculos. Em menos de uma década, os elementos da construção estão se deteriorando de modo muito rápido, deixando a edificação comprometida. Para que isso não aconteça, de acordo com a Ana Paula Ferreira, assessora técnica da equipe de Patrimônio da Cáritas|ATI Mariana, “é necessário viabilizar as obras de restauro antes da próxima temporada de chuvas, período em que os danos se agravam e há grande chance de que a estrutura ceda”, afirma.
Foto: Maria Luísa Sousa/ Cáritas MG - ATI Mariana
“A gente bem sabe que se vier mais uma chuva corre um sério risco da nossa capela não aguentar. O meu maior desejo hoje é ver o início das obras começarem” - Mônica Santos, atingida de Bento Rodrigues e integrante da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF).
Enquanto há fé, há luta: um ato religioso
No dia 27 de maio, a Comissão de Atingidos de Bento Rodrigues, com apoio da Cáritas|ATI Mariana, realizou um ato após a celebração da missa com o Pe. Marcelo Santiago para reivindicar a importância do início das obras de restauração. De acordo com os relatos e com a vistoria técnica realizada pela Cáritas, a situação é grave e perceptível em vários locais. Mesmo com os tapumes que cercam a área da igreja, o processo de restauração não foi iniciado, sendo apenas sinalizado pela Fundação Renova. Em reunião realizada no dia 24 de maio, a Fundação Renova indicou a necessidade de um prazo de 180 dias para a licitação e contratação da empresa que assumirá as obras de restauro.
Padre Marcelo Moreira Santiago durante a missa em Bento Rodrigues. Foto: Maria Luísa Sousa/ Cáritas MG - ATI Mariana
“Um ato religioso, um ato de toda essa igreja. Um compromisso nosso que possa levar a diante e, tão logo, para que se inicie as obras na preocupação com a preservação. Aqui é um espaço emblemático, é o nosso espaço de resistência por excelência.” - Padre Marcelo Santiago
O Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC), firmado em 2016, definiu entre os 22 programas sócio-econômicos a serem criados pela Fundação Renova, a diretriz de Preservação da Memória Histórica, Cultural e Artística. Por meio dele, é assegurado o restauro dos templos religiosos, para além de outros bens que fazem parte do patrimônio coletivo, tombados ou inventariados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA). Porém, a morosidade e descaso da Fundação Renova no processo de reparação também é identificada em relação ao território e à Capela das Mercês, pois os atingidos demonstraram intensa preocupação com a exploração de minério próximo à Bento Rodrigues, onde uma delas é de responsabilidade da Vale, no projeto Fábrica Nova.
Ao longo do ato, a intenção das orações foi pela manutenção da capela. Foto: Maria Luísa Sousa/ Cáritas MG - ATI Mariana
Durante o ato religioso, moradores de Bento Rodrigues relataram que antes do rompimento a própria comunidade organizava e realizava as manutenções necessárias com recursos e mão de obra própria. Manoel Marcos Muniz destaca que a preservação da Capela das Mercês é também a preservação das pessoas que ajudaram a constituir o distrito. “É muito importante a questão da preservação. Eu acredito que os escravos sofreram para construir igrejas, muros aqui no Bento. Então, vejo como muito importante a questão da preservação nesse sentido, porque tem a história de Bento Rodrigues.” relata.
Devotos de costas para a capela em ato simbólico de benção. Foto: Maria Luísa Sousa/ Cáritas MG - ATI Mariana
“O ato é muito importante para mostrar que o Bento Rodrigues não acabou e não vai acabar. Tem pessoas da comunidade e da comissão (CABF) que querem esse espaço preservado para mostrar aos nossos filhos e netos - para mostrar tbm pro mundo - o que as mineradoras causaram.” - Manoel Marcos Muniz, atingido de Bento Rodrigues e integrante da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF).
Em homenagem àqueles e àquelas que fizeram parte da história da comunidade, às pessoas que cuidaram por muitos tempo da capela e hoje são falecidos, foram mencionados os nomes de Amélia Campidelle Quintão, Laudelina dos Reis Nery, Dercira da Conceição da Silva, Manoel Muniz, André Campidelle, Maria da Conceição Muniz, Luis Cardoso da Silva, Pio Nery, João Artencio, Antônio André, José Sobreira, Suely Sobreira, Carlos Antônio dos Santos, Ana Felipe Campidelle, Lúcio Mauro Santos e Eurico dos Santos. a comunidade fez presença dessas pessoas a partir do nome pelos anos de dedicação à igreja. Em seguida, todas as pessoas presentes uniram-se em um grande abraço em volta da Capela das Mercês, na esperança de que a manutenção comece logo.
Momento final do ato religioso na Capela das Mercês. Foto: Maria Luísa Sousa/ Cáritas MG - ATI Mariana
Por Maria Luísa Sousa e Silmara Filgueiras, da Assessoria Técnica Independente em Mariana.