COLABORE

Nove anos depois, Projeto a Longo Prazo e Acordo de Repactuação aprofundam cenário de incertezas

Áreas de Atuação

Em jornada de mobilizações, comunidades atingidas pelo rompimento em Mariana lutam por participação popular e reparação integral.

Publicação: 11/11/2024



Em 2024, o mês de novembro traz, novamente, a lembrança dolorosa do maior desastre-crime socioambiental do Brasil. Há exatos nove anos, no dia 5 de novembro, o rompimento da barragem de Fundão, em Bento Rodrigues, a 26 quilômetros de Mariana, ceifava vidas e destruía comunidades inteiras, deixando um rastro de perdas e aflições. Diante da contínua busca por justiça, a partir da reparação integral dos danos socioambientais ao longo da Bacia do Rio Doce, a Comissão de Atingidos e Atingidas pela Barragem de Fundão (CABF), a Cáritas MG|ATI Mariana e movimentos sociais, organizaram uma programação de mobilizações e partilha.

Foto: Luísa Campos/Cáritas MG

Os atos, que tiveram como mote a pergunta “Como contar o tempo que não volta?” convidaram pessoas atingidas, entidades parceiras e moradores de Mariana a refletirem sobre os impactos do dia 5 de novembro de 2015 e, principalmente, as constantes violações de direitos humanos e ambientais provocadas pelo rompimento da barragem de Fundão. As mobilizações, que se dividiram entre Bento Rodrigues e Mariana, tiveram como pauta também a sobreposição de danos provocados por empreendimentos minerários da região, somados à letargia e ineficiência do processo de reparação conduzido pela Fundação Renova, entidade criada para recuperar danos socioambientais, mas que tem gerado constantes traumas a milhares de pessoas atingidas ao longo da Bacia. Lideranças atingidas manifestaram, ainda, a resistência ao Acordo de Repactuação, conduzido sem a participação das pessoas atingidas de modo efetivo, e ao Projeto a Longo Prazo, da mineradora Samarco, que pretende ampliar a capacidade produtiva da empresa a 100%, com o prazo de atuação estabelecido até o ano de 2042. 

Fragmentos dos tempos nas vésperas do marco dos 9 anos

Na noite do dia 4 de novembro, durante a abertura da exposição fotográfica, quem esteve no corredor do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), foi convidado a observar algumas visualidades atingidas. Cada registro ali apresentado propôs um mergulho na complexidade e na dor de um desastre-crime cujos danos desafiam os modos de vida de inúmeras famílias, mesmo após quase uma década. Divididas entre seções intituladas “Memória”, “Religiosidade”, “Ser Atingido”, “Caminhos de Luta” e “Territórios Atingidos”, as imagens buscaram tornar visível os lugares e costumes que, embora transformados, ainda pulsam e resistem, assim como as pessoas que neles vivem.

Após a visitação à exposição, uma roda de conversa reuniu pessoas atingidas, membros da CABF, representantes da Cáritas MG|ATI Mariana, ativistas e parceiros. O encontro serviu como um espaço de fala e escuta onde os participantes puderam compartilhar suas memórias, reforçando a importância do lembrar para seguir resistindo. As histórias contadas, além de emocionarem, reafirmaram um compromisso coletivo de não deixar que narrativas de governos e mineradoras cessem a luta por justiça e reparação. Ainda que o rompimento da barragem seja um capítulo muito triste da história dos territórios, ele é apenas uma parte, e que não deve ser ele a definir o curso de mais de 300 anos de vivências.

Foto: Maria Luísa Sousa/Cáritas ATI|Mariana

"Eu estou aqui"

O encontro em Bento Rodrigues, realizado na manhã do dia 5 de novembro, reuniu moradores, familiares, autoridades e representantes de movimentos dos atingidos de Minas Gerais e Espírito Santo para um ato de memória e protesto que destacou, principalmente, a ausência de participação das vítimas na elaboração do Acordo de Repactuação, assinado em 25 de outubro e homologado pelo Superior Tribunal Federal em 6 de novembro, de 2024. 

Foto: Luísa Campos/Cáritas MG

O movimento no território de origem foi iniciado com acolhida realizada pelo Padre Marcelo, da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, de Mariana, que abençoou os presentes e fez a leitura do Evangelho. Em seguida, os nomes das pessoas vitimadas tanto no dia do rompimento, quanto nos anos subsequentes, foram lidos em honra às suas memórias. Após isso, Mônica dos Santos, moradora de Bento Rodrigues, e Flora Passos, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e integrante do Grupo Conterra, abordaram os riscos do Projeto de Longo Prazo da Samarco, alertando sobre as ameaças que a iniciativa representa para as comunidades locais.

Em caminhada pela comunidade, foram plantadas mudas com os nomes das vítimas fatais, um tributo aos 19 falecidos e um natimorto. Ao chegarem aos arredores da praça central, os moradores expressaram que seguem na luta pelos espaços sagrados e mencionaram que as ruínas de São Bento e a Capela Nossa Senhora das Mercês atualmente estão fechadas para limpeza e restauro. O cuidado com os templos é fruto de muita luta da comunidade ao longo do processo de reparação. Neste momento, os moradores pediram ao Ministério Público de Minas Gerais para assegurar a reconstrução das capelas de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira. “Hoje, por exemplo, deveríamos estar celebrando lá dentro [da Capela de São Bento]. Mesmo destruída, continua sendo o melhor lugar do mundo e o nosso lugar,” afirmou Mônica.

O promotor Daniel Campos, representando o MPMG, reforçou que a reconstrução das capelas faz parte do Acordo de Repactuação e destacou que o tombamento municipal da área impedirá que as mineradoras tenham posse ou propriedade dos imóveis locais. “Esses lugares são símbolos vitais da história e identidade da comunidade. O tombamento municipal garante a preservação e a manutenção do que restou, impedindo qualquer intervenção que não seja de proteção. Essa medida assegura que a comunidade mantenha a conservação da Capela, atendendo à demanda dos atingidos contra a permuta de imóveis com as mineradoras,” explicou o promotor.

O ato no território de origem foi concluído na quadra de Bento Rodrigues, onde, em um último momento de união, os presentes realizaram uma oração e entoaram palavras de ordem contra a mineração e em defesa dos direitos dos atingidos. Ergueram suas vozes clamando contra a mineração predatória e em defesa do direito à vida. Um momento de memória para reafirmar a determinação incansável de preservar a história de todos os que sofrem com o rompimento, — aqueles e aquelas que estão sempre presentes em seus territórios, apesar do deslocamento forçado.

Projeto a Longo Prazo da mineradora Samarco

Visando a expansão das operações entre Mariana e Ouro Preto, o Projeto a Longo Prazo, da Samarco, propõe a instalação de novas pilhas de estéril e rejeito em áreas próximas às comunidades de Bento Rodrigues e Camargos, já atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão em 2015, operada pela Samarco, Vale e BHP.

O objetivo da mineradora é atingir grande capacidade produtiva até 2042, com a construção das estruturas de lavra, correia transportadora e duas novas pilhas de rejeitos: PDER-M e PDER-C. Ao fim das instalações, a PDER-M deverá alcançar 221 metros de altura e acumular 62 milhões de metros cúbicos de rejeito. Já a PDER-C será dividida em duas partes, com alturas de 130 e 210 metros, e um volume total que ultrapassa 172 milhões de metros cúbicos.

Apesar das restrições de segurança para barragens previstas na Lei 12.334/2010 (nacional) e na Lei 23.291/2019 (estadual), a Samarco aproveita a ausência de legislação específica sobre pilhas de rejeito, que contêm percentual de água, para propor a instalação das estruturas em áreas ainda não totalmente reparadas, como Bento Rodrigues e Camargos.

Foto: Luísa Campos/Cáritas MG

Em 17 de janeiro de 2024, o Conselho Municipal de Meio Ambiente de Mariana (Codema) aprovou a anuência ao projeto com 12 votos favoráveis, majoritariamente do executivo municipal, e apenas dois votos contrários, vindos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Associação dos Guias de Turismo. Autoridades locais, como o prefeito Celso Cota, o secretário de Planejamento Germano Zanforlim e o secretário de Meio Ambiente Anderson Aguilar, enfatizaram a dependência econômica de Mariana da mineração, o que impulsionou a decisão.

Além do aval do Codema, a implementação do projeto ainda aguarda o parecer do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) , que deverá decidir sobre a viabilidade da instalação das novas estruturas. No entanto, a ausência de uma data para essa decisão tem mobilizado movimentos e associações de pessoas atingidas para que os danos do rompimento da barragem de Fundão, bem como outros desastres minerários em Minas Gerais, não sejam esquecidos e sirvam como alerta para evitar novas catástrofes.

Lutar e organizar para os direitos conquistar 

Sob o lema “Lutar e organizar para os direitos conquistar”, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) organizou uma plenária na Arena Mariana, onde foram discutidos os termos do Acordo de Repactuação recentemente firmado. O evento reforçou a demanda por justiça e reparação integral para os atingidos da Bacia do Rio Doce, incluindo municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo, que ainda aguardam reconhecimento oficial como atingidos.

Foto: Luísa Campos/Cáritas MG

Pela primeira vez, uma caravana de moradores do sul da Bahia, vindos das proximidades do Parque Nacional de Abrolhos, integrou as manifestações, reivindicando reconhecimento como atingidos. Junto a delegação de Minas Gerais e Espírito Santo, as pessoas atingidas exigiram justiça e criticaram a falta de participação nas negociações de repactuação. Nenhuma autoridade municipal esteve presente nas mobilizações realizadas no dia 5 de novembro, entretanto, a plenária contou com a participação de representações de mandatos legislativos estaduais, como da deputada estadual Beatriz Cerqueira e dos deputados Padre João e Leleco Pimentel.

À tarde, os participantes da plenária do MAB deixaram a Arena Mariana a caminho da Praça Minas Gerais, no centro da cidade, e se juntaram aos manifestantes que haviam participado do ato em Bento Rodrigues pela manhã. O grupo marchou pelas ruas centrais de Mariana, passando em frente à Prefeitura e seguindo em direção à Praça Minas Gerais. Às 16h20, hora aproximada do rompimento da barragem em 2015, os sinos das igrejas de São Francisco, de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa Senhora do Carmo soaram em rito fúnebre de homenagem às vítimas da tragédia, marcando o momento de maneira solene.

Acordo de repactuação é formulado sem participação das pessoas atingidas 

Com o valor total de R$ 170 bilhões para a reparação e R$ 100 bilhões destinados ao pagamento pelas empresas em 20 anos, o acordo de repactuação foi assinado em 25 de outubro, com a presença do presidente da República, do vice-presidente e de representantes dos ministérios da Saúde, Mulheres, Igualdade Racial, Povos Indígenas, Casa Civil, Minas e Energia, além de representantes da Advocacia Geral da União, das Instituições de Justiça e do Poder Judiciário. O documento foi homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 6 de novembro, um dia após o marco de nove anos do rompimento de Fundão. 

c A mesa de repactuação, criada em 2023, estabeleceu novos acordos, novamente sem a participação das pessoas atingidas, a partir de investidas dos governadores de Minas Gerais e do Espírito Santo, junto à Justiça Federal e ao Conselho Nacional de Justiça, buscando um novo acordo com base no firmado após o rompimento de Brumadinho. Por atribuir caráter de ampla repercussão e possibilidade de instauração de conflitos entre os entes federados, a mesa de repactuação submeteu à Suprema Corte do País o texto das tratativas, para que a sua homologação fosse feita por este órgão. Que, em decisão proferida em 24.10, aceitou a incumbência para que fosse dada continuidade à Mesa de Repactuação perante a Presidência do STF.

As negociações do novo acordo visavam resolver questões não contempladas anteriormente. O objetivo era negociar todas as medidas, programas, responsabilidades e obrigações assumidas pela Samarco, pela Fundação Renova e pela BHP Billiton em decorrência do rompimento e seus desdobramentos. O acordo prevê que a adesão dos municípios ou a participação nas iniciativas de indenização individual são facultativas, mas em caso de aceite, pressupõem a desistência, retirada e/ou extinção das ações judiciais ajuizadas relacionadas ao rompimento, inclusive no exterior.

Em um atropelo à implementação tardia do TAC Governança e sem participação efetiva dos atingidos e atingidas, o acordo reduz o espaço anteriormente garantido para a participação social e a governança, de modo a enfraquecer a centralidade e protagonismo das vítimas na busca pela reparação integral. Além disso, não há detalhamento dos R$ 38 bilhões já gastos no processo reparatório, tampouco uma auditoria independente que explique a aplicação desses valores.


Foto: Luísa Campos/Cáritas MG



Por Luísa Campos e Maria Luísa Souza, da Cáritas MG e Cáritas|ATI Mariana 

Revisão: Marisa Versiani

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