Os problemas e as adversidades que as mulheres das comunidades de Córregos e Gondó (distritos de Conceição do Mato Dentro) passam também são atravessados pela atividade da mineradora e seus impactos. No cotidiano, geralmente são elas as responsáveis pelo plantio e cuidado com a horta e com as plantas medicinais; são elas que alimentam as crianças e que cuidam da casa quando seus maridos ou companheiros vão trabalhar em outros lugares. Por isso, nesta luta, as mulheres atingidas também tê suas próprias reivindicações, como a defesa dos seus territórios e da água; a busca pela garantia de direitos, saúde e cidadania.
Assim, essas mulheres percebem e vivenciam os impactos da mineração cotidianamente, seja através da lida com as plantas, que ficam carregadas de pó de minério, seja por conta dos barulhos e das vibrações nas casas, e ainda por causa da insegurança em lidar diariamente com os trabalhadores que circulam nas comunidades e que são, em sua maioria, homens.
“A gente percebe por causa das doenças que a gente tá lidando ali todo dia na horta, quer dizer aí que a gente vê muita poeira que acerta na folha da verdura; pra gente comer tem que ser bem lavadinho.” comenta Simone Simões, moradora de Gondó.
A insegurança que se revela devido à presença de trabalhadores circulando pelas comunidades é ainda maior quando as mulheres ficam sozinhas em casa. “(...) se ele [Carlos, seu marido] sair de casa e aparecer uma moto lá, eu já fico com a orelha em pé, né? Meu Deus do céu, será que é, será que eu conheço? Será que não? Entendeu? Porque tem muita gente diferente na cidade, né? A gente não sabe quem tá entrando, quem tá saindo, né? Nesse ponto aí eu acho pra mulher bem mais difícil.” relata Maria Andreza, moradora de Gondó.
Maria Andreza, moradora de Gondó | Foto: Cecília Santos/Cáritas ATI 39
Paloma Soares, que mora em Córregos, também comenta essa situação de insegurança. “Veio mais gente diferente pra cá. E pra nós mulheres que passamos mais tempo ‘só’, na comunidade, em casa, gera insegurança, desconforto…”
Paloma, moradora de Córregos | Foto: Júlia Militão/Cáritas ATI 39
Por conta dessa situação, as mulheres atingidas ficam em um constante estado de alerta, como comentou Maria Andreza. “A gente fica em alerta. Aí tipo assim, quando ele sai e chega mais tarde, eu penso assim: se aparecer alguém ali pra que lado que eu vou né? Mas tem um mato grande ali, né? O negócio é você correr no mato, eu penso, deixa tudo aberto aí e sai correndo né? Se tiver que levar, vai levar, tô nem aí, eu quero é cuidar de mim”.
Outro desafio relacionado ao gênero é que as mulheres realizam diversos serviços ainda pouco reconhecidos e valorizados pela sociedade. Em comunidades rurais, para além de serem trabalhadoras rurais, elas também são trabalhadoras domésticas, mães, esposas e filhas. Elas lidam com a terra, com o rio, com as tradições no modo de fazer, estar e comunicar.
De acordo com a advogada popular da Coordenação Nacional do Movimento de Atingidos por Barragem, Tchenna Maso, "ser mulher atingida é obrigatoriedade de reinventar-se cotidianamente.” A vida delas é também feita da luta contra os impactos causados pela mineração. Elas dedicam parte do seu tempo ocupando espaços de debate, mesas de negociação, burocracias, aprendendo termos jurídicos, lidando com as Assessorias Técnicas e debatendo com órgãos públicos e a mineradora. Mas o que as motiva a seguir reivindicando?
Para Marli Peixoto, moradora da comunidade de Gondó, “todo dia a gente tá, é, num lugar que a gente gosta muito, sabe? Num lugar que a gente já se acostumou e a gente tá aí na luta, né? A gente tá enfrentando barulho, poeira demais toda hora. Pra mim, ser mulher atingida é isso, é tudo que a gente tá passando e erguer a cabeça, sabe? É essa luta constante e no final, e a gente tem uma dosinha de que um dia vai melhorar, entendeu? Algum dia vai melhorar” (Marli Peixoto, moradora de Gondó).
Marli Peixoto, moradora de Gondó | Foto: Cecília Santos/Cáritas ATI 39
“Mulher suporta muita coisa”
Muita gente coloca como natural que as mulheres consigam fazer várias tarefas ao mesmo tempo. Entre essas tarefas está: cuidar da casa, dos filhos, da horta, costurar, tirar o leite, trabalhar fora, entre outras. É assim que elas contribuem com o sustento da família, “depois que eu casei, [trabalhei] costurando. Eu trabalhei demais, menina. Tinha dia que acordava e arrumava as coisas correndo pra ir costurar. Fiz o uniforme da banda completíssimo, com boné, com tudo. Já ganhei muito dinheiro com ela [a costura], ajudava aqui em casa também, porque o Luíz era professor, e professor não ganha tanto, né?", foi o que nos contou Maria da Conceição, conhecida como Mariinha, moradora de Córregos.
Mariinha e sua máquina de costura que a acompanha há mais de 30 anos | Foto: Júlia Militão/Cáritas ATI 39
Porém, historicamente, muitas dessas atividades que, costumeiramente, as mulheres fazem, não são reconhecidas como trabalho. Assim, essas tarefas são realizadas em momentos que deveriam ser de descanso e lazer. Como comentou Expedita Silva, moradora de Córregos, “uma mulher tem mais força do que um homem, porque o homem trabalha, chega ali ‘ai, vou tomar banho e vou deitar’. Tem comidinha na mão, café na mão, banho tomado. E a pobre da mulher vai até tarde. Até pra doença a mulher é mais forte. A mulher é mais forte do que o homem, mulher suporta muita coisa”.
Expedita Silva, moradora de Córregos | Foto: Júlia Militão/Cáritas ATI 39
A sobrecarga de trabalho, porém, pode ser resolvida com a divisão das tarefas de casa entre as mulheres e seus companheiros. Assim é na casa de algumas famílias, como na de Maria Andreza, por exemplo. Ela conta que, para além das tarefas, até as decisões da casa são tomadas juntas. “Até para tipo assim, vai vender um bezerro e aí ele pergunta, né? Nós estamos precisando vender um bezerro, como é que faz? Eu falo, ué, é isso que nós temos? Para servir? Vende meu filho. [...] É muito bem dividido, graças a Deus” (Maria Andreza, moradora de Gondó)
Somos diferentes e únicas
Para além do enfrentamento às diversas formas de impacto à vida e às atividades das mulheres atingidas, existem especificidades que também são importantes de serem consideradas. Nas comunidades de Córregos e Gondó, por exemplo, percebemos que há uma grande quantidade de moradoras pardas e negras. A vida dessas mulheres muitas vezes é atravessada por outras experiências e desafios por conta da cor da pele, para além dos problemas enfrentados por serem mulheres.
Marli Peixoto, moradora de Gondó, reflete sobre a negritude em sua vida e em sua família, e de como as experiências e desafios de ser uma mulher negra não a faz ser uma pessoa melhor ou pior do que outras. “Ô, menina, eu sempre me idealizei por ser parda, mas, assim, eu me considero sim, porque, tipo assim, eu tenho parentes que são negros, eu acho uma cor muito linda, de verdade e respeito muito também isso, sabe? Esse ponto e tal da cor porque cor não define ninguém, não vai fazer de uma pessoa melhor ou pior. Então eu me considero sim, tenho parentes, né, minha tradição, lá atrás, aliás, meu avô conta a história que ele era filho de índio. Eu tenho parentes atrás que já foi escravizado. Então, são pessoas que eu admiro demais. Sabe? De verdade, muito, muito, muito mesmo. Então, ah, não define ninguém, entendeu? Não vai colocar ninguém melhor nem pior, entendeu?”
Entre essas mulheres, também existe a diferença de geração. Para as mais velhas, é possível perceber que houveram algumas mudanças com relação à forma como as mulheres se comportavam e se comportam hoje, ou como eram e são tratadas pela sociedade.
“Eu acho que as mulheres de antigamente eram mais, tipo assim, antigamente eu acho que elas aceitavam mais, apanhavam mais, eu falo isso por causa de família mesmo. Sabe, que a gente cresceu vendo a vó às vezes apanhando demais, né? Então eu acho que não dá para ser, né? Para deixar para um lado não, tem que tem que cuidar das mulher. Nossa, mãe, porque antigamente era muito difícil” (Maria Andreza, moradora de Gondó)
“Agora que eu entendo a coisa, eu acho importantíssimo, porque a vida toda a mulher era muito jogada, não ia em reunião, não ia em nada. Tudo era o homem. Hoje não, hoje a gente é independente, né? De tudo... Eu moro sozinha, sou velha e sou independente. Eu vou falar com você a verdade, eu não tenho contato com esse pessoal [mais jovem], mas acho que melhorou. A mulher hoje tem muita possibilidade, anda, faz suas compras…” (Maria Conceição, moradora de Córregos)
Quando falamos em “mulheres”, queremos representá-las dessa forma, no plural. As mulheres que vivem nas comunidades de Córregos e Gondó são diversas. São pardas, brancas, pretas, magras e gordas. Com cabelos encaracolados e lisos, longos e curtos. Cada qual faz de suas vivências a força para seguir resistindo e construindo um caminho próprio, só delas. Porém, a potência de cada uma é potencializada quando estão juntas - seja para trocar saberes ancestrais, para dividir as dificuldades e dores ou para possibilitar que as tradições de uma comunidade sejam passadas para as novas gerações.
“Eu acho que é muito importante porque a gente conversa, troca de ideia de coisas diferentes, que a gente aprende também, né? Plantações de remédio medicinais que se chama né? A gente aprende também como plantar, plantas que tem vez que a gente não conhece o nome delas. E assim a gente bate papo, né? Eu acho muito legal e importante” (Simone Simões, moradora de Gondó).
Simone Simões, moradora de Gondó | Foto: Cecília Santos/Cáritas ATI 39
“Agora tem pouquinha gente, né? Tudo longe. Assim, eu acho pior isso agora, né? A gente era tudo unido ali, agora vai cada um para um lugar diferente, é a pior coisa do mundo. Separou as mulheres do Gondó.” (Lia Pinto de Jesus, moradora de Gondó).
Lia Pinto de Jesus, moradora de Gondó | Foto: Cecília Santos/Cáritas ATI 39
“(...) eu morei um tempão em Conceição. A gente lá tinha aquele grupinho das mulheres, sabe? Que às vezes juntava. Ah! Vamos fazer hoje um galo com pé de porco aí, vamos comer junto e vamos ficar conversando. E aí sim, um dia ia na casa de uma, de uma outra na outra semana, no outro mês na casa da outra, sabe? Era muito legal. [...] Eu também acho importante ó, vai saber que eu sei de uma coisa boa, até de uma receita boa, eu passo, outra salva outra coisa, ouve e passa, né? (Maria Andreza, moradora de Gondó).
Celebramos, nesta edição, a vida, a luta e a força das mulheres atingidas de Córregos e Gondó. O dia 8 de março foi apenas um marco do que deve ser relembrado todos os dias: que as mulheres ocupem os espaços, sejam respeitadas, reconhecidas e estejam à frente e possam enxergar o potencial que carregam!
Por equipe de Comunicação Cáritas ATI 39