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Porteirinha e Serranópolis aprovam lei pioneira que reconhece rio Mosquito como sujeito de direitos

Áreas de Atuação

Agora, as comunidades se mobilizam para que o reconhecimento tenha aplicações em políticas públicas nos municípios em que o rio perpassa.

Publicação: 14/05/2024


Em uma conquista histórica para o Norte de Minas Gerais, a Câmara Municipal de Porteirinha aprovou por unanimidade, no dia 2 de abril, o Projeto de Lei (PL) 01/2024 que reconhece e protege os direitos do rio Mosquito. A aprovação representa um avanço legislativo na validação dos direitos de um ente não-humano, em uma iniciativa pioneira no estado. No Brasil, o rio Laje, em Guajará-Mirim (RO), foi o primeiro do país a ser reconhecido como um ente vivo e sujeito de direitos. A lei, também aprovada recentemente no município de Serranópolis de Minas, garante a existência do rio e de todos os outros seres, humanos e não humanos, que vivem e estão presentes em suas águas. Seguindo similar proteção e garantia de direitos, está a lei nº 2251/2024, aprovada em Porteirinha, como informa o artigo 1º: 

“Ficam reconhecidos os direitos intrínsecos do Rio Mosquito e sujeito de direitos, e de todos os outros corpos d`água e seres vivos que nele existam naturalmente ou com quem ele se inter-relaciona, incluindo os seres humanos, na medida em que são inter-relacionados num sistema interconectado, integrado e interdependente no âmbito do Município de Porteirinha.”

Por se tratar de uma região com forte presença da agricultura familiar, o rio Mosquito tem um papel importante na garantia da sociobiodiversidade – mais do que isso, é essencial para a existência de todas as formas de vida. Geração de renda, promoção da segurança alimentar e nutricional, turismo de base comunitária, além da urgente conservação do meio ambiente, são apenas alguns fatores que demonstram a importância do rio, não somente para a população de Porteirinha, como para cidades vizinhas por onde corre seu curso d’água.


Ente de direitos: garantia de proteção do rio Mosquito

No município de Serranópolis de Minas, cidade de pouco mais de 4 mil habitantes ao norte do estado, sobre a serra do Espinhaço, está a nascente do rio Mosquito. Recurso hídrico crucial para manutenção do equilíbrio do meio ambiente, é também essencial para a vida dos moradores das comunidades em que o rio perpassa. A economia e geração de renda dos municípios são baseadas, principalmente, na agricultura, no cultivo de hortaliças e na criação de animais. 



Registro do rio Mosquito, em Serranópolis de Minas ( Foto: Sandra Doyama / Equipe Viagem Kombinada).


Afluente dos rios Gorutuba e Pardo, o Mosquito parte de Serranópolis rumo a Porteirinha, município de 37 mil habitantes, e corta a cidade de oeste a leste, passando bem na área central da cidade. A cidade mobiliza, há anos, um movimento em prol da recuperação da saúde do rio, além da preservação de sua nascente, despoluição de diversos trechos, cuidado com a vegetação e todo o meio ambiente que o circunda. De lá, as águas rumam para Nova Porteirinha, município de 6 mil habitantes, e segue seu caminho até encontrar com o rio Pardo. 

Irmã Mônica de Barros, da Congregação Filhas de Jesus, é fundadora da Associação Casa de Ervas Barranco da Esperança e Vida (Acebev), uma das organizações que atuam na luta pela preservação do rio Mosquito. Nos argumentos em defesa do Mosquito, está a íntima relação das comunidades com o curso d’água: “Em seu leito a vida passa constantemente. Na sua margem tem toda uma cabeleira verde de vida, de medicamentos, de coisas maravilhosas que o Pai Deus deixou. As comunidades que são banhadas por esse rio têm uma imensa gratidão, um imenso respeito e um quase infinito cuidado. As margens são a segurança que o rio e as comunidades têm para sobreviver.”

Um dos fatores de mobilização popular para recuperação do rio se relaciona com as enchentes, que já atingiram Serranópolis e Porteirinha em várias ocasiões. Devido ao intenso assoreamento, junto às características de relevo da região, o rio não comporta os momentos de cheia. Como resultado, ruas, casas e comércios são invadidos pela água e moradores precisam deixar seus endereços às pressas. Na última enchente, ocorrida em março de 2024, mais de 100 casas ficaram alagadas em Porteirinha.

“Por conta das enchentes que assolaram a Bahia e o norte de Minas Gerais entre o final de 2021 e o início de 2022, a Rede Cáritas foi mobilizada para a realização de uma campanha de ajuda humanitária denominada ‘SOS Bahia e Minas Gerais’. Na etapa de construção de ações de incidência política, durante um encontro em uma das comunidades atingidas pela cheia do rio Mosquito, os moradores decidiram pela revitalização ou, como disseram, pelo cuidado com a ‘saúde do Rio’. Como ação estratégica e, dentro da revitalização, foi apontada a necessidade de construção de uma lei que reconhecesse os direitos e protegesse o rio Mosquito.”, explica Aldinei Leão, agente Cáritas e assessor jurídico do Centro de Referência em Direitos Humanos do Norte de Minas (CRDH Norte), instituições que auxiliaram no fortalecimento da mobilização dos moradores. 

A lei municipal nº 2251/2024 para garantia dos direitos do rio Mosquito, em Porteirinha, teve seu projeto de lei apresentado pelos vereadores Adão Custódio e Ney Batista, foi construído de forma colaborativa, a partir de uma intensa mobilização popular em defesa da recuperação e proteção do rio, com participação ativa de famílias agricultoras, organizações sociais e lideranças comunitárias. Entre os parceiros envolvidos estão, também, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha, a Associação Casa de Ervas Barranco de Esperança e Vida (ACEBEV), a Articulação no Semiárido Mineiro (ASA Minas), a Cáritas Regional de Minas Gerais e a Cáritas Arquidiocesana de Montes Claros, que organizaram a campanha “Todos pelo Rio Mosquito”.



Registro do ato “Todos pelo rio Mosquito”, em Porteirinha. (Foto: Helen Borborema)


O projeto, sancionado no dia 15 de abril pelo prefeito de Porteirinha, Juracy Freire (PP), agora aguarda regulamentação para que seus efeitos práticos na proteção do rio sejam efetivados. Lideranças, movimentos sociais e as comunidades seguem mobilizados: “A luta não está encerrada, simplesmente a luta nos deu mais um sinal de vida. Não basta você ter uma lei muito bonita e ela não ser respeitada, não ser aplicada. Temos que fazer essa lei valer porque ela é, agora, um instrumento de proteção, não só do rio, mas de tudo que o envolve.”, afirma Irmã Mônica. 

O que diz a lei?

A lei garante a existência do rio e de todos os outros seres, humanos e não humanos, que vivem e estão presentes em suas águas. Dentre os direitos do rio Mosquito e outros entes relacionados, a lei reconhece a importância de:

1) Manter seu fluxo natural e em quantidade suficiente para garantir a saúde do ecossistema;

2) Nutrir e ser nutrido pela mata ciliar e as Florestas do entorno e pela biodiversidade endêmica;

3) Existir com suas condições físico-químicas adequadas ao seu equilíbrio ecológico;

4) Interrelacionar-se com os seres humanos por meio da identificação biocultural, de suas práticas espirituais, tradicionais, de lazer, da pesca artesanal, agroecológica, cultural e do Turismo de Base Comunitária.


A mobilização pelo reconhecimento dos direitos do Mosquito não se restringiu apenas a Porteirinha, estendendo-se aos municípios de Serranópolis de Minas e Nova Porteirinha, por onde o rio também perpassa. Os prefeitos Max Vinícius (PT), de Serranópolis, e Regina Antônio (PSL), de Nova Porteirinha, apresentaram projetos semelhantes em suas Câmaras Municipais, demonstrando o potencial de alcance e a importância dessa conquista para toda a região – em Serranópolis, a lei que também reconhece o rio Mosquito como sujeito de direitos já foi aprovada pelos vereadores. A luta pelo rio ganhou ainda mais fôlego com a apresentação, pela vice-presidenta da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), a deputada estadual Leninha Souza (PT), de um Projeto de Lei que visa a proteção do Rio Mosquito a nível de estado.

Umas das propostas trazidas pela nova legislação é a criação de um Comitê Guardião do Rio Mosquito, formado por representantes das comunidades e de entidades do município. “Nesse sentido, assim como a aprovação da lei só foi possível por meio da ação protagonista das comunidades, a sua implementação dependerá de uma metodologia participativa que vem sendo desenvolvida,  onde a própria comunidade vai definindo as ações e quem vai fazer e como fazer.”, finaliza Aldinei.


Discussão dos Direitos da Natureza no Congresso Nacional

Como próximos passos, os representantes das mobilizações planejam encaminhar a pauta do rio Mosquito para o Congresso Nacional, como parte de uma das ações estratégicas da Articulação pelos Direitos da Natureza - a Mãe Terra.

Composta por organizações da sociedade civil, povos indígenas e comunidades tradicionais, a Articulação atua de forma incisiva na afirmação legislativa e na construção de políticas que consagram direitos à natureza. Nesse sentido, foi proposta a realização de uma Audiência Pública em prol da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Direitos da Natureza, com objetivo de pautar de maneira ampla no cenário legislativo nacional a importância do tema, especialmente frente aos compromissos climáticos assumidos pelo Brasil internacionalmente.

Foi enviado ofício ao gabinete da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL) com pedido de audiência pública sobre a PEC pelos Direitos da Natureza, com proposta de data para 5 de junho, Dia Nacional do Meio Ambiente. A reunião com a deputada para diálogo sobre a audiência pública foi realizada no dia 8 de maio e, de acordo com representantes da Articulação, a parlamentar, que na liderança do movimento pela PEC no Congresso Nacional, se demonstrou inspirada pelas conquistas dos moradores de Porteirinha.


Por Luísa Campos, da Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais

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