Em 21 de novembro de 2015, o mar do Espírito Santo recebeu a lama de rejeito de minério proveniente do rompimento da barragem de Fundão, de responsabilidade da Samarco (Vale/BHP), em Mariana (MG). O local do rompimento foi há quilômetros do estado capixaba, no distrito de Bento Rodrigues, no dia 05 de novembro.
As correntes de água do Rio Doce foram invadidas por 48,3 milhões de metros cúbicos de rejeito, segundo relatório da Ramboll encomendado pelo Ministério Público Federal (MPF). Todo esse volume percorreu 663 quilômetros até chegar ao distrito de Regência, em Linhares (ES), e desaguar no mar. O percurso causou a devastação de flora e fauna, além de mudar a vida da população de 41 municípios dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo ao longo da rota de destruição.
Após quase oito anos do rompimento e do encontro do rejeito de minério com o mar, o meio ambiente não foi recuperado e as pessoas atingidas não tiveram uma reparação justa e integral. É nesse cenário que a 6ª Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce foi acolhida pelo distrito de Regência, no último domingo (18).
Como o tema “Bacia do Rio Doce: nossa Casa Comum” e o lema “No princípio, o espírito pairava sobre as águas (Gn 1,2)”, o evento contou com a presença de cerca de quatro mil pessoas, segundo a Diocese de Colatina. As pessoas peregrinas ecoaram por Regência as denúncias das comunidades atingidas, bem como rememoraram as conquistas alcançadas nesses quase oito anos desde o rompimento da barragem de Fundão.
Um instrumento de resistência e fé para todos aqueles que buscam por uma reparação justa e digna, a Romaria foi ainda um importante espaço de intercâmbio e trocas das pessoas atingidas e para reivindicarem, juntos, por justiça e respeito para todos os modos de vida da bacia, além de reforçar a importância de cuidar do planeta, a nossa Casa Comum.
As romeiras e romeiros caminharam pelo distrito com cartazes e palavras de ordem em direção à praia, onde a celebração eucarírsitca encerrou a Romaria. A missa foi presidida por Dom Lauro Sérgio Versiani Barbosa, bispo da diocese de Colatina. Em sua homilia, o bispo destacou que a bacia do Rio Doce ainda sofre com violações de direitos e que muito ainda é preciso ser feito em relação à responsabilização dos causadores do rompimento da barragem e à reparação das pessoas atingidas.
O compromisso das pessoas presentes na busca por direitos é vista pelo bispo como ato profético em favor da vida. “O que nos move a estar aqui é justamente a conscientização, a mobilização, o crescimento na compreensão da nossa vocação e da nossa missão de cuidadores da Casa Comum”, declara.
Durante a missa aconteceram diversas manifestações, Dom Lauro ainda destacou que “devemos cultivar a mística do cuidado com a natureza e com os irmãos. As empresas não podem fazer o que querem, A economia não pode ter essa autonomia em relação à política e à ética, mas devem estar todas voltadas realmente para o bem coletivo, É preciso que sejamos cuidadores uns dos outros e da Casa Comum”.
Foto: Pedro Caldas/Cáritas Diocesana de Itabira
Denúncias do chão e da terra marcam a trajetória das Romarias
Um instrumento de resistência e fé para todos aqueles que buscam por uma reparação justa e digna, a Romaria foi ainda um importante espaço de intercâmbio e trocas das pessoas atingidas e para reivindicarem, juntos, por justiça e respeito para todos os modos de vida da bacia, além de reforçar a importância de cuidar do planeta, a nossa Casa Comum.
“Tem dia que a gente dá aquela vontade mesmo, sente até o cheiro de um peixe assado. A gente chegava com o peixe, o fogo aceso já no fogão à lenha, onde a gente jogava o peixe lá na brasa. Eu sinto falta disso.” Esse não é um simples desejo de Margareth Adelaide dos Santos Carla. Esse é um pedaço gravado na memória da moradora de como era o modo de vida em Regência antes do rompimento da barragem de Fundão.
Nascida no distrito, Margareth é pescadora, assim como o seu marido, mas é privada de exercer sua profissão. Regência é um pequeno vilarejo onde os modos de vida estavam relacionados à água, tanto do rio quanto do mar. A pesca, o surfe e o turismo giravam a economia local. No entanto, hoje a comunidade vive com o medo e desconfiança da contaminação dos peixes, do mar e, até mesmo, das próprias pessoas terem metais pesados correndo em seus corpos.
Porém não é só a saudade do passado que consome a pescadora. Ela se preocupa com o futuro do ofício. “A primeira coisa que nossos filhos sabiam fazer era pescar, e hoje em dia as crianças vão crescendo sem saber o que vão fazer”, lamenta.
Cleonice Pereira, atingida da comunidade de Santa Rita, município de Marliéria, também participou do encontro e reforçou sobre a importância das pessoas seguirem na luta e denunciar o quanto foram afetadas pelo rompimento. “A Romaria é maravilhosa para falar da perda que tivemos: água, plantio, acabou com nossa terra. Dá vontade da gente chorar, gritar pro mundo inteiro ouvir que nós perdemos tudo. Só Deus sabe, não podemos usar água, o peixe. Todo mundo sofrendo por uma causa só.”
Messias Caliman é uma dessas pessoas que se juntam ao coro de denúncias. Ele foi uma das pessoas que se encantaram com a tranquilidade e acolhida do distrito. Há 31 anos, viu no local a possibilidade de criar o filho com mais liberdade e desfrutar do esporte da sua juventude, o surf. Porém carregar hoje um laudo médico amargo. “Nós fizemos a pesquisa [sobre contaminação do sangue por metais pesados] alguns anos atrás e eu fui um dos doadores de material. Eu estou todo contaminado, só que foi uma universidade que fez essa pesquisa que não tinha autorização, não teve validade nenhuma”.
Lucimere Leão, coordenadora de Relações Institucionais da ATI Cáritas Diocesana de Itabira, reforça o papel das Romarias como espaços de reivindicações e manifestações de fé. “A gente transforma esse espaço em um grande santuário do povo. Então o povo vem para essa grande Romaria, neste santuário que é a água, que é a Terra e que é um santuário de luta. Essa é também uma diferenciação: não apenas rezar, mas também fazer denúncias, mas também anunciar o que nós temos de luta e de experiências exitosas nesse contexto, especificamente da bacia do Rio Doce.”, completa.
Foto: Tainara Torres/Cáritas Diocesana de Itabira
Romarias do Rio Doce: um contexto de união e fé
“A Romaria da bacia do Rio Doce é um ciclo. Nós trabalhamos nas quatro dioceses da província. Realizamos a primeira Romaria na diocese de Governador Valadares, a segunda na diocese de Caratinga, a terceira na arquidiocese de Mariana, a quarta na diocese de Itabira e depois na diocese de Guanhães que compõe a bacia e estamos fechando o ciclo aqui na diocese de Colatina. E estamos retomando, voltando para o ciclo inicial e no ano que vem, se Deus quiser, vamos realizar a sétima Romaria das Águas e da Terra na diocese de Valadares.” explica Lucimere.
Além de se somar às reivindicações reunidas ao longo da bacia, a Romaria é um espaço de união entre pessoas atingidas, povos originários, entidades religiosas que atuam por uma reparação justa para os territórios atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão que, nesta edição, se encerrou com uma grande caminhada na Foz do Rio Doce.
Foto: João Carvalho/Cáritas Diocesana de Itabira
Quer saber mais? Confira a “Carta ao povo de Deus”, lida durante a 6ª Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce”.