COLABORE

Maria Geralda: 5 anos sem justiça.

Áreas de Atuação

Maria Geralda tem na reconstrução da sua comunidade e nas festas de celebração da Igreja a força para lutar e aguentar o dia a dia

Publicação: 18/12/2020



Maria Geralda, natural de Paracatu de Baixo, estudante da comunidade escolar de Águas Claras, era coordenadora da Igreja de Santo Antônio, santo padroeiro de sua cidade natal. Como católica dedicada a seu povo, zelava pela manutenção da Igreja e da fé de seus conterrâneos, ministrava cursos de batismo e de crisma para manter viva a chama de Deus no coração de todos e todas. Sua casa, no alto do morro, foi o refúgio de tantas famílias naquele 5 de novembro de 2015, lá foi que ela abrigou amigos, vizinhos, imagens da Igreja e rezou para que a lama de rejeitos não levasse de sua comunidade nenhuma vida.


Como tantos atingidos pelo crime do rompimento da Barragem de Fundão, muito da história de dona Maria Geralda ficou enterrada sob a lama. De seu pai, que fora da Folia de Reis por quase setenta anos, foram embora os instrumentos, as panelas e as indumentárias. Do pouco que restou, a lama só não levou embora a bandeira e a imagem do Menino Jesus e a fé no Espírito Santo, que os guiaram para encontrá-las sob metros de lama mole. A reconstrução de sua comunidade com seus vínculos e suas festas de celebração da Igreja é a esperança que a move para aguentar o dia a dia e lutar contra as injustiças de um crime que se renova todos os dias pelas mãos de quem acha que o dinheiro vale mais que a vida.




De todas as coisas que você sente falta, das lembranças da lavoura, da Igreja. Qual é a falta que você mais tem daquela vida que você tinha há cinco anos atrás?


Maria Geralda: “Da liberdade menina, da liberdade. Hoje eu não tenho liberdade e meu povo não tem liberdade. Nós não temos liberdade e não teremos mais. A liberdade que nós tínhamos na nossa comunidade Paracatu de Baixo, nós não vamos ter mais, acabou. Hoje, podem construir uma nova casa, pode ser uma casa bonita, pode ser casa com mais conforto, mas não vai ser a mesma. Não vai ser a mesma. Hoje, até então, nós temos até medo porque quando fala "atingido" muitas pessoas acham que a gente tem dinheiro. Às vezes a gente é incriminado por isso. As pessoas julgam a gente hoje, porque no princípio, logo quando a barragem rompeu, muitas pessoas falaram que o desemprego bateu recorde na cidade de Mariana e que nós, atingidos, que éramos culpados. A gente ouviu isso de muitas pessoas. Na própria comunidade virou um contra o outro, achando que quem ficou com a casa não tinha direito nenhum. Mas no dia seguinte eu tive que largar minha casa e vir embora acompanhar o meu povo sem saber para onde ia também, porque ninguém se importava com o mau cheiro, a catinga que a comunidade transformou. Só ficou o silêncio e o mau cheiro, nada mais. E mesmo assim a gente agradece a Deus, porque se não fosse o avião pousar no campo, pela primeira vez na comunidade, eu acho que a lama tinha levado muita gente embora. Eu tenho muita fé em Deus, então eu creio que Deus chegou na frente. Nós somos uma comunidade católica, uma comunidade de fé e Deus chegou na frente. Se a lama passasse por volta das sete horas e se o avião chegasse lá por volta de 7 horas afora, a lama teria levado muita gente da comunidade porque na parte de baixo tinha muita gente, tinham idosos, tinha gente deficiente. Mas Deus teve dó da nossa comunidade. O avião quando pousou deu cinco minutos para sair, e todo mundo saiu correndo. Foi quando todo mundo saiu correndo pra esse alto de morro que a minha casa está.”



Você, que já foi coordenadora da Igreja, o que você acha que a fé contribui para a luta?



Maria Geralda: “Muito bem menina! Eu acho que a fé contribui muito. Eu vejo isso quando tem lá uma festa da padroeira, uma festa de Nossa Senhora Aparecida, uma festa do Menino Jesus, até com uma carreata agora que a gente fez. Porque a gente se encontra, a gente se encontra com a gente mesmo. A gente vê muitas pessoas da comunidade e que às vezes tem tempos que a gente não via e é quando aparece todo mundo. E então a gente forma uma só família quando é assim. Fora disso, a gente não vê ninguém. E então às vezes eu penso se eu preciso fazer alguma coisa para a Igreja. Eu penso nisso, sabe. Porque é preciso fazer alguma coisa na Igreja, o povo precisa, e eu preciso levar o povo. E só consigo seguir dessa forma. Mas eu não tenho outra forma para levar. Só dessa forma que eu consegui. Através da fé. Pras pessoas retornarem na nossa comunidade, teve a festa do padroeiro que foi feita dentro da quadra, em cima da lama porque ainda não tinha liberado a Igreja pra gente ir. Tem muitas pessoas que ouvi dizerem que nunca mais colocariam os pés na nossa comunidade, mas foi através das festas que muita gente já voltou à nossa comunidade de Paracatu. A fé que levou, mais nada, eu observei sabe? A única coisa foi a Igreja, que fez com que muitos sentissem essa vontade, de que era preciso voltar lá. E é quando tem uma festa do padroeiro, de Santo Antônio, Nossa Senhora Aparecida, do Menino Jesus é que as pessoas vão. Este ano foi o pior ano de todos desses cinco anos pras festas. Por conta da pandemia nós não tivemos como, mas não passou em branco. A gente fez uma simples homenagem ao nosso padroeiro Santo Antônio, fizemos para o Menino Jesus e para Nossa Senhora Aparecida, comemoramos com uma carreata.”




Você tem alguma lembrança, pode ser um objeto, uma foto, que te faça rememorar como era sua vida antes do crime?  



Maria Geralda:Menina, tem uma outra coisa também que eu quero te dizer. O meu pai tem 90 anos, quando a lama passou ele estava com 85 anos. Você olhava para omeu pai e ele não parecia ter essa idade toda, pelo que ele fazia. Hoje meu pai tem 90 anos, já passaram cinco anos, e toda hora que olho para meu pai ele está chorando e me pergunta "Eles já vão fazer a casa? Já estão fazendo?". Eu fico sem resposta e falo para ele "eles vão fazer pai, vão fazer as casas. Vai demorar muito tempo não". Meu pai mora no bairro Rosário e eu aqui, sempre vou lá na casa de meu pai. Eu olho para meu pai e vejo meu pai chorar igual uma criança de saudades da casa dele. De saudade dos instrumentos que ele tinha. Meu pai tinha um quarto na casa dele que guardava todos os instrumentos da Folia de Reis. Ele começou a participar da folia de reis quando estava com 15 anos e ela já existia na comunidade. Todos os instrumentos. As panelas que usava, porque quando fazia a festa tinha de ter comida para todo mundo, no final da festa era almoço pra todo mundo na casa do meu pai. A lama levou tudo. E eu tinha muito cuidado, porque a minha mãe já tinha falecido há muitos anos também, então eu era a única mulher que mexia com as coisas do meu pai, guardava. Se tivesse que fazer qualquer coisa de casa, de cuidado de limpeza, do guardar, essas coisas, era eu. E eu tinha um cuidado, sempre, sempre eu ia lá tirava as poeiras dos instrumentos, ajudava a limpar tudo, jogava um plástico por cima, jogava um outro pano limpo, que às vezes tem época de chuva né, e por causa de poeira. A folia tem um tempo, ela tem o tempo dela, porque a Folia só toca setembro, setembro é o mês escolhido para comemorar a festa, porque dezembro já é festa, é Natal. Então a festa do Menino Jesus, da Folia de Santos Reis, a gente comemora em setembro. Então meu pai tinha bandeiras da Folia de Reis, você já viu né? A bandeira do Menino Jesus. Então, eu montava um presépio na Igreja, montava um presépio na casa do meu pai e lama passou e levou tudo o que tinha dentro da casa do meu pai, quebrou parede e não largou nada para trás, nada, nada a lama deixou. O que ela deixou, alguns bumbos grudados no barro, mas todo estourado, e os tachos, as vasilhas da festa levou tudo embora. A lama só deixou para trás uma bandeira que não parecia. 


O meu pai depois que passou os 15 dias, um mês, meu pai quis voltar lá. A gente não queria que ele fosse. Chorou tanto que ele foi. Chegou lá, ele levou meus dois irmãos. Um deles é Jaci, e Romeu Nié também foi. E aí meu pai falou para eles assim "A lama levou tudo que eu tinha. Mas eu tive um sonho, eu tive um sonho que a bandeira do Menino Jesus está aqui", às vezes as pessoas não acreditam, mas aí meu irmão falou assim "Pai, não tem lógica se a lama levou tudo o que tinha, onde que ela ia deixar a bandeira aqui?”. Aí ele falou assim que ia subir pra tocar um animal e depois voltava para ajudar a acabar de “cavucar”. Aí o meu irmão Jaci - que hoje eu olho para ele assim, sei lá, parece que ele perdeu toda a esperança que ele tinha na vida dele, não é a mesma pessoa mais - ele falou com meu pai "Já que o senhor disse que seu coração fala que aqui vai achar algo, eu vou “cavacar”, aí meu pai respondeu "É, eu falei mas é muito barro, é muita lama, não tem nada aqui. Não dá nem pra ver onde é que direito aqui, onde que era o quarto", mas meu irmão retrucou "Não, eu vou olhar pro senhor". O meu irmão pegou a enxada começou a “cavacar”, meu irmão “cavacou” tanto e encontrou uma sacolinha, um plástico, porque quando passava a festa eu lavava, dobrava a bandeira e enfiava dentro de um plástico para guardar na mala dele. Meu irmão “cavacou” tanto, foi “cavacando”, “cavacando” até. Aí meu pai disse que o coração dele falou mesmo que bandeira do Menino Jesus dele estava ali, mas que não precisava “cavacar” tanto, que era muita lama. Mas meu irmão não parou. O meu pai tirou o chapéu da cabeça, olhou para o céu e falou assim "Eu sinto e tenho certeza que a lama levou tudo. Mas o meu Menino Jesus com a bandeira estão aqui". Foi aí que meu irmão Jaci disse que se meu pai dizia que estava ali, ele ia “cavacar”, nem que levasse dias. E no que ele “cavacava”, ele viu o plástico e na mesma hora viu um vermelho e chamou meu pai que tinha descido. Meu pai voltou correndo e quando meu pai voltou correndo, ele já falava pro meu irmão cavar mais, e antes de meu irmão, meu pai ajoelhou no chão e levou a mão e puxou e saiu a sacolinha, e quando ele olhou a bandeira estava dentro. Sem uma gota de barro. A bandeira da Folia de Reis. Mas meu irmão “cavacou” mais de metros. E na época a lama ainda estava mole, e ele “cavacou” tanto, mas tanto. Aí meu pai falou "onde estava a bandeira? Que na mesma mala onde eu guardo a bandeira  eu guardo a imagem. Pode olhar, cavaca com jeito que vai achar". É isso que me deixou sem palavras sabe. Eu fiquei meio assim "Meu Deus como pode ser uma coisa dessa?". O meu irmão continua “cavucando” e, eu não sei como ele conseguiu tirar o Menino Jesus deste tamanhinho. 


Peguei ele, levei embora, meu pai caiu de joelhos no chão chorando o Menino Jesus. Levei para minha casa lá no alto, lavei a lama, toda a lama deles, peguei pano, enxuguei ele e guardei o Menino Jesus na minha casa lá na roça, porque a Fundação Renova quis juntar com um monte de coisa, que tudo que achou lá era para trazer para casa da Restauração, um monte de coisas, mas só que o Menino Jesus não era da Igreja, era da casa do meu pai. Portanto, eu tenho aqui, um Menino Jesus, tá vendo? Trouxe de Aparecida do Norte, você sabe que Menino Jesus é aquele? Ele veio da Aparecida do Norte, tá na caminha, mas não é esse que achou no barro. Esse aqui da é família, meu pai que trouxe. Depois foi a Aparecida que ele trouxe, não é o da lama, mas é assim, o Menino Jesus assim. E o Menino Jesus dele eu deixei lá na minha casa, deixei lá guardadinho. Porque lá a lama não quebrou lugar nenhum. Claro que só sujou, mas eu lavei tudo.”



Entrevista, fotos e vídeo realizados por Marcela Nicolas e Guilherme Gandolfi, em 01 de novembro de 2020, pela Cáritas MG. Edição Ana Júlia Guedes.

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