COLABORE

Mariana: Troca de afetos e resistência dão tom ao lançamento da Cáritas MG

Áreas de Atuação

Dia 3/6, no auditório do ICSA (UFOP), estiveram presentes para o evento, representantes da Cáritas MG e pessoas atingidas

Publicação: 10/06/2022


Atingidos e representantes da Cáritas MG e Ufop durante o lançamento

“Com este lançamento, estamos deixando um legado para o futuro. Mas ainda tem muito a se fazer e nós não podemos abandonar a luta. Para que o nosso povo não tenha sofrido em vão, porque, hoje, não sabemos mais o que é sorrir. Vamos seguir em frente e mostrar que a gente não tem medo, que, como coletivo, fomos e ainda vamos muito longe. Que essa luta não se acabe, mas que continue com nossos filhos, nas próximas gerações. Que os que puderem continuar ao nosso lado, continuem. Não deixem apagar o brilho que ainda  existe nos olhos. E que todo mundo entenda que lutar sozinho é impossível”. A fala de Luzia Queiroz, atingida da comunidade de Paracatu de Baixo pelo rompimento da Barragem de Fundão (Samarco/Vale/BHP), foi um dos momentos mais marcantes do lançamento, em Mariana, dos dois produtos da Cáritas MG. Trata-se do museu virtual “Mariana Território Atingido” (www.territorioatingido.com.br) e do livro “O direito das comunidades atingidas pela mineração à Assessoria Técnica Independente”, apresentados por representantes da organização, no dia 3 de junho, no Auditório do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA), na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

O site e o livro dão a ver o intenso trabalho  da Cáritas MG em prol da reparação justa e integral aos atingidos pelo crime socioambiental ocorrido em 2015 e considerado o maior do país. A troca de afetos entre as pessoas atingidas, representantes da Cáritas MG e de outras entidades parceiras deu o tom do evento, que também foi marcado pela necessidade de seguir com a luta - o desastre-crime das mineradoras  continua causando danos e perdas mesmo sete anos depois. Conquistado pela sociedade civil, o direito à Assessoria Técnica Independente (ATI) aos atingidos pela mineração tornou-se um marco recente no contexto dos conflitos socioambientais causados por empreendimentos minerários em Minas Gerais. 

A primeira ATI dessa natureza foi garantida às comunidades de Mariana, atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão. Escolhida pelas pessoas atingidas de Mariana, a Cáritas MG assumiu, em 2016, o desafio de atuar como ATI nas comunidades. Entre outras coisas, a ATI atuou junto às pessoas atingidas na reformulação de um extenso cadastramento e foi responsável pela realização do levantamento de perdas e danos e baseado em núcleos familiares. "O evento teve como objetivo apresentar os dois produtos recém lançados pela Cáritas MG, mas foi também um momento de encontro de pessoas atingidas, de trabalhadores e trabalhadoras da Cáritas, além de parceiros, em confraternização e partilha", afirmou Letícia Aleixo, coordenadora do Projeto de Incidência na Pauta da Mineração (PIPAM) da Cáritas MG.

Luzia, no entanto, explicou que há diferenças entre “celebrar e comemorar”. “Nós, atingidos, continuamos tristes. Vendo o caminho que a repactuação está tomando, por exemplo, a gente já prevê outra pancada. Mas agora, com o museu virtual e o livro lançados pela Cáritas, não vamos perder todas as informações que constam no Cadastro, nos dossiês familiares, nos registros históricos”, frisou a atingida, que integra a Comissão de Atingidos da Barragem de Fundão (CABF). “A conquista do direito à ATI mostra que é possível lutar contra os poderosos, os donos do dinheiro, se a luta for coletiva. Se nós nos juntarmos, conseguimos impedir essa destruição, essa coisa horrível que está massacrando, como eles dizem, os oprimidos. Mas não somos oprimidos porque não temos dinheiro: detemos a técnica de viver bem sem precisar de muito dinheiro”, completa a atingida, que compartilhou a mesa de lançamento com Samuel da Silva, secretário regional da Cáritas MG; Letícia Aleixo, coordenadora do PIPAM/Cáritas MG; Carolina Machado Saraiva, Coordenadora do Observatório CAFE/UFOP; e Gabriel Leite, Assessor Técnico da Cáritas MG em Mariana.

Durante o evento, as pessoas atingidas receberam o livro e contaram sobre suas histórias de luta

A perda dos modos de vida, das culturas locais, das atividades econômicas (geralmente ligadas ao meio-ambiente), e as tentativas das mineradoras de desfragmentar a coletividade das comunidades, por meio de uma reparação desigual, foram pontos abordados pelos atingidos. “Em Paracatu, por exemplo, a maioria das pessoas vivia do escambo, não havia muita movimentação financeira. E o dinheiro, da forma como chegou, foi outra desgraça na vida dessas pessoas, porque desfragmentou muitos núcleos familiares, já que alguns receberam o auxílio emergencial, outros não, num processo sem muito critério feito pelas mineradoras”, afirmou Luzia Queiroz. Atingido da comunidade de Paracatu de Cima e membro da CABF, Marino D’Angelo ressaltou que a região foi muito impactada pelo crime, afinal a maioria dos habitantes vivem da terra. “Hoje, essas propriedades viraram depósito de lama da mineradora", afirma .

Marino destacou a importância da atuação da ATI junto aos atingidos. “Se hoje a gente tem noção dos nossos direitos é porque tivemos a assessoria técnica. O cadastro da mineradora chegou pronto, cheio de pegadinhas, com apenas três horas para responder. E nós não aceitamos o cadastro e exigimos uma assessoria técnica independente. E conseguimos. Então, quando a Cáritas assumiu a ATI ela reformulou o cadastro, junto com a gente, num processo longo de aprendizado. E, hoje, o cadastro é o que dá base e parâmetro para provar os danos que você teve. Então, ele é fundamental para todos os atingidos”, disse, sublinhando a importância do site e do livro para comunidades que vierem a passar por crimes relacionados à mineração. “Eu acredito na Justiça. Acredito que a gente consiga a reparação de parte do que nós perdemos. Mas tem coisas que não vamos recuperar nunca mais, coisas que o dinheiro não compra”.

Neste sentido, a Folia de Reis de Paracatu de Baixo foi destacada como uma manifestação que, ao continuar ativa após o desastre-crime, ajudou os atingidos da comunidade e de outras no entorno a voltarem a se unir.  A Folia consta em um dos conteúdos temáticos retratados no Museu Virtual dentro do eixo Religiosidade Popular, tendo sito também uma das entidades cadastradas pela Cáritas. Com a morte do mestre José Patrocínio de Oliveira, conhecido como “seu Zezinho”, o mais velho de seus 24 filhos, Antônio Geraldo Oliveira (Nié), 69, ficou encarregado de manter viva a tradição. “Quando meu pai estava para morrer, ele me disse: ‘meu filho, você conhece tudo da Folia de Reis e é meu filho mais velho. Se você quiser que eu continue tendo uma vida feliz, onde eu estiver, não deixe a nossa festa acabar''', contou, destacando a devastação causada pelo rompimento da barragem em sua comunidade. “Hoje, você chega em Paracatu de Baixo e parece um deserto. Muita gente foi embora da comunidade. Não tem mais o campo de futebol, a igreja fica praticamente fechada. Minha casa foi derrubada e depois foi levantada de novo, no mesmo lugar. E ainda faltou uma parte do dinheiro, que eu tive que colocar do meu bolso”.

O evento foi marcado por falas importantes das pessoas atingidas que vivenciam as consequências da lama de rejeitos, desde 2015

Também atingido da comunidade de Paracatu de Baixo e filho de “seu Zezinho”, José Geraldo Pereira, de 27 anos, sublinhou os danos causados à saúde mental dos atingidos pelo crime da Samarco/Vale/BHP. “A gente nem sabia que tinha uma barragem daquele tamanho ali. Quando ficamos sabendo da lama, só pensamos em pegar o que desse e correr. Enquanto a Cáritas nos abraçou, muitos de Mariana tacaram pedras. Nos humilhavam, falavam do ‘povo que vem da lama’, ‘povo que desceu do rio’. No começo, eu sofri muito bullying nas escolas de Mariana. Algumas pessoas tiveram distúrbios mentais, precisaram de auxílio médico”, disse. “A gente teve que sair da nossa comunidade de um jeito que nunca imaginamos. Mudar de onde a gente tinha tudo. Saúde, felicidade, festa. A vida, em si. E, de um dia para o outro, tivemos que ir para uma cidade totalmente diferente, mudar de escola, ficar longe das pessoas que amamos”, completou, destacando que, assim como o irmão mais velho, também não deixará morrer a Folia de Reis e nem de lutar pela reparação justa e integral aos atingidos. 

Por Lucas Buzatti – Especial para a Cáritas MG
Fotos de Tamás Bodolay


>> Assista na íntegra o lançamento em Mariana

>> Acesse o museu virtual

>> Veja o catálogo do museu virtual

>> Leia o e-book “O direito das comunidades atingidas pela mineração à Assessoria Técnica Independente”

Tag