COLABORE

Projeto 'Vale do Lítio' transformará o Jequitinhonha em polo de exploração para benefício externo

Geral

Os lucros serão internacionalizados, enquanto os impactos sociais e ambientais da exploração ficarão nas comunidades.

Publicação: 21/12/2023


Ainda que a lembrança dos recentes desastres-crimes em Bento Rodrigues (MG) e em Brumadinho (MG) esteja viva em nossa memória, suas consequências, mesmo após anos, estejam sendo contabilizadas, e centenas de comunidades mineiras convivam com a ausência de reparação justa, o executivo e o legislativo de Minas Gerais buscam formas de incentivar a exploração em solo mineiro. O foco, agora, é o lítio presente no Vale do Jequitinhonha, território historicamente explorado pelo neoextrativismo.

O projeto de lei (PL) nº 1.992/2020, de autoria do deputado Doutor Jean Freire (PT), que pretende instaurar o Polo Minerário e Industrial do Lítio nos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, está em tramitação na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Projeto está sendo votado sem a participação efetiva da população de Minas Gerais, principalmente as comunidades tradicionais dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), define quem são os povos e comunidades tradicionais, além de estabelecer a obrigação dos governos em reconhecer e proteger os modos de vida, valores, práticas sociais, culturais, religiosas e espirituais. 


Ao mesmo tempo, o governador do estado, Romeu Zema (Novo), lançou, em maio de 2023, em Nasdaq, bolsa de valores de Nova Iorque, o projeto “Lithium Valley Brazil”, que pretende transformar o Norte e Nordeste de Minas Gerais em reduto de exploração do lítio ao atrair para os Vales do Jequitinhonha e Mucuri empresas de capital internacional.


Na contramão de países das Américas Latina e Central, como Chile, Bolívia e México, que estão nacionalizando a exploração de lítio em seus territórios, o governo brasileiro publicou, em julho de 2022, um decreto que flexibiliza as exportações do mineral extraído do Brasil. O decreto nº 11.120, assinado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e pelo então ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, reduz o controle do Estado sobre as operações de comércio exterior de minerais e minérios de lítio e de seus derivados.


A publicação acende um novo alerta sobre a exploração internacional do lítio e demais recursos minerais do Brasil, uma vez que favorece empresas multinacionais. Uma delas é a canadense Sigma Lithium, que obteve licença operacional no fim de março de 2023 e escoou a primeira leva de lítio explorado no Vale do Jequitinhonha ainda em maio. 


Chamado de “ouro branco” da transição energética, o lítio possui capacidade de conduzir calor em um alto potencial eletroquímico, condição necessária para o funcionamento das baterias utilizadas no mercado da tecnologia, como celulares, notebooks e carros elétricos. Dessa forma, o lítio se posiciona como elemento-chave para a substituição dos combustíveis fósseis para a estratégia da transição energética, não sendo levado em consideração pelo argumento que sustenta a transição os tantos impactos sociais e ambientais gerados pela extração do metal.


Na natureza, o metal está presente nos cristais de espodumênio, um mineral encontrado nas rochas de pegmatitos que compõem o solo dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, região que concentra cerca de 85% das reservas de lítio do país. Como uma das estratégias para a exploração, as mineradoras afirmam que proporcionarão desenvolvimento econômico e social para a região. Entretanto, os lucros não ficarão concentrados nas comunidades afetadas pela mineração e os empregos gerados serão temporários. 


Para o Brasil de Fato, Aline Weber Sulzbacher, pesquisadora do Observatório dos Vales do Semiárido Mineiro, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), explica que por mais que o Vale do Jequitinhonha se posicione como uma localidade estratégica, também atrai uma lógica de empreendimentos que visam internacionalizar os lucros e interiorizar os impactos sociais e ambientais: “Não é garantido para essas regiões uma perspectiva de assegurar que as comunidades possam, de fato, usufruir do que é produzido. Quando pensamos em internacionalização de lucros, eles são revertidos para investidores ou para empresas que administram o capital que, muitas vezes, são de capital internacional, o que faz presente a dificuldade de converter esta produção em infraestrutura local”, endossa.


O modelo de extração mineral em larga escala, adotado em países ditos em desenvolvimento, como o Brasil, Nicarágua, Equador, El Salvador, Costa Rica e Paraguai, por exemplo, significa, a nível mundial, um instrumento impulsionador da economia. Por outro lado, para as localidades forçadas a sobreviver à exploração do capital, o sistema de extração é sinônimo de duras batalhas para as comunidades, que enfrentam remoções compulsórias, instalação de rotas de fuga de suas próprias terras, e a convivência com as inúmeras consequências sociais e ambientais que se instalam nas comunidades com a chegada das mineradoras. 


O impacto das atividades abalam profundamente a subjetividade dos indivíduos, os modos de vida, as atividades laborais e a economia local, as expressões culturais e religiosas. Ultrapassando as bordas da vida social, arrasam com paisagens e contaminam solos, plantações, vegetações, exterminam animais e recursos hídricos. 


O Vale pertence ao Jequitinhonha


Localizado no Nordeste de Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha abriga 55 municípios, o que representa 14% do tamanho do estado. A localidade é banhada pelo rio que dá nome ao território, onde vivem cerca de 950 mil pessoas e está dividido em três microrregiões: Baixo, Médio e Alto Jequitinhonha. O Baixo Jequitinhonha compreende a microrregião de Almenara, a mais próxima do Estado da Bahia, enquanto o Médio abrange as regiões de Pedra Azul e Araçuaí. Por fim, mais próximo da Região Metropolitana de Belo Horizonte, está o Alto Jequitinhonha, que reúne as microrregiões de Diamantina e Capelinha. Todo o território representa 14% do estado mineiro.


Foto: Plano de Desenvolvimento para o Vale do Jequitinhonha, da Fundação João Pinheiro. Reprodução

Foto: Plano de Desenvolvimento para o Vale do Jequitinhonha, da Fundação João Pinheiro. Reprodução.



Culturalmente rica, o Vale do Jequitinhonha carrega em si o estigma da pobreza, fruto dos processos históricos de exploração mineral, já nos ciclos do ouro e do diamante, e da ausência de investimento social. Apesar dos indicadores oficiais apontarem desigualdades, pesquisadores destacam que a riqueza produzida na região vai além dos números do Produto Interno Bruto (PIB). O estudo “Programas sociais, mudanças e condições de vida na agricultura familiar do Vale do Jequitinhonha Mineiro”, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), revela que as feiras locais têm um papel crucial no abastecimento, atendendo entre 16,70% a 44,22% da população.


A professora Flávia Galizoni ressalta: “A visão do ‘Vale da Miséria’ é uma perspectiva, mas é feita a partir de situações que usam índices e medições que dizem muito pouco sobre a realidade local, que é principalmente de agricultura familiar e pesca.”. A região abriga cerca de um milhão de pessoas, distribuídas em mais de 80 municípios socioculturalmente diversos, o que se revela nos modos e fazeres distintos das populações. 


São notórias e inegáveis a riqueza cultural do território: há música, literatura, verso, viola, produção artesanal aos montes e saberes ancestrais, fortemente influenciadas pelas culturas negra e indígena. Entre os povos indígenas dessa região, estão, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os Aranãs, Pankararus e Pataxós, além da forte presença de comunidades quilombolas, como Gravatá, Cruzinha, Catitu do Meio, Rosário e Mutuca.


As festas tradicionais são outro traço da profunda riqueza cultural do Nordeste de Minas Gerais. Fruto do sincretismo entre religiões de matriz africana e o catolicismo, celebrações regionais são nacionalmente conhecidas, como a Festa do Rosário e a Festa do Congado de Chapada do Norte, considerada patrimônio cultural do Estado. O Festivale, festival de cultura popular, é um dos maiores do país, outro exemplo do forte reconhecimento e da rica identidade cultural da região.


Em um mesmo território, o artesanato é culturalmente diverso. Em Itinga, por exemplo, destacam-se as esculturas em madeira; em Berilo, Virgem da Lapa e Minas Novas, a tecelagem; em Turmalina e Veredinha, os bordados em ponto cruz; em Diamantina, os tapetes Arraiolos; em Almenara, a cestaria; em Araçuaí e Jequitinhonha, os típicos trabalhos em couro. 


Barro que rompe fronteiras


Os saberes transmitidos de geração em geração, o ofício dos artesãos e o artesanato em barro são expressões do Vale do Jequitinhonha que rompem fronteiras da região. Em 2018, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA) consagrou a cultura popular da arte em barro do Nordeste de Minas como Patrimônio Imaterial de Minas. O barro, matéria-prima indispensável para os moradores do Vale, é moldado em variadas peças que encantam pela modelagem única.


Para a produção do artesanato em barro existe uma soma de conhecimentos que vai desde a coleta da argila ideal, o processamento desse material, à produção de fornos para queima dos trabalhos criados pelas mãos habilidosas dos artesãos locais. A cerâmica produzida pelas comunidades ao longo do território ganhou destaque pela qualidade, variedade em peças decorativas, utilitárias e religiosas e, também, pelo volume produzido.




Personagens em barro elaborados por artesã do Jequitinhonha à venda no Mercado Novo, em Belo Horizonte (Foto: Valley for Vale. Reprodução no Instagram)

A Raízes Desenvolvimento Sustentável é um exemplo de negócio social que cria e implementa projetos para promover o desenvolvimento territorial e a transformação social sem recorrer à exploração do território. No Nordeste de Minas, é desenvolvido o projeto Cultura Sustentável no Vale do Jequitinhonha, que tem como proposta promover os aspectos ambientais, culturais e econômicos da região. A valorização acontece por meio do artesanato, produzido em sua maioria por mulheres, que utilizam a biodiversidade local de forma sustentável, gerando trabalho e renda para suas famílias, além da formatação de roteiros e promoção do território como ponto de turismo.


O patrimônio histórico-cultural do Vale do Jequitinhonha é ainda enriquecido por figuras icônicas como tropeiros, canoeiros, pescadores, artesãos, lavadeiras e romeiros. Suas atividades e ofícios, transmitidos de geração em geração, perpetuam a identidade cultural do Vale do Jequitinhonha.



Para Estado e investidores, o que importa é a reserva mineral 


Levantamentos realizados pela InvestMinas, agência de promoção de investimento e comércio exterior de Minas Gerais, ligada ao governo de Minas Gerais, apontam que o Vale do Jequitinhonha possui 45 depósitos do mineral, se configurando como a maior reserva do país. Ainda de acordo com o governo, o material encontrado no território é de alta pureza, o que aumenta seu valor de mercado.

Somente nos quatro primeiros meses de 2023, foram abertos 188 processos de mineração relacionados ao lítio, montante igual ao total de processos registrados entre 1973 e 2021. Os dados são do Observatório dos Vales do Semiárido Mineiro da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), que tem acompanhado e pesquisado sobre os projetos de exploração do minério no território.

A Companhia Brasileira de Lítio (CBL), que foi pioneira ao explorar a região, produz desde 1991 na Mina da Cachoeira, nos municípios de Araçuaí e Itinga, com capacidade de produção de 45 mil toneladas/ano de concentrado de espodumênio. Outras quatro mineradoras, todas listadas na Nasdaq, desenvolvem projetos de exploração do mineral no Vale do Jequitinhonha: Sigma Lithium (Canadá), Atlas Lithium (EUA), Lithium Ionic (Canadá) e Latin Resources (Australia).

No cenário da transição energética e busca por alternativas aos combustíveis fósseis, o lítio aparece como peça-chave. Contudo, a instalação de mega empreendimentos minerários em Itinga e Araçuaí, no Jequitinhonha, revela uma face pouco debatida: os impactos do extrativismo e sua superexploração dos recursos naturais. Enquanto discursos apontam para a modernização do setor elétrico, a região já vem enfrentando desafios relacionados à exploração do lítio. 

O Vale do Jequitinhonha é uma das regiões com maior concentração de comunidades quilombolas do Brasil, segundo dados de 2021 da Fundação Palmares. Os megaprojetos de exploração de lítio destacam a contradição entre a riqueza natural da região e a pauperização da exploração contínua. Os processos de “desenvolvimento” ignoram as lógicas cotidianas das populações tradicionais, privando-as de terras, recursos e territórios importantes para a manutenção de seus modos de vida.

As recentes descobertas de lítio no Vale do Jequitinhonha impulsionaram a Sigma Lithium, elevando suas reservas de 13,4 para 52,4 milhões de toneladas de pegmatito, a rocha que abriga os minerais de lítio. No entanto, o preço desse avanço é alto: a planta de extração prevê o consumo de 42.000 litros de água por hora, em uma região já afetada pela escassez hídrica. 

Essa é apenas uma das perspectivas que indicam preocupações sobre o agravamento da escassez hídrica, já acentuada por projetos de desenvolvimento anteriores, como a monocultura do eucalipto, em ação na região desde a década de 1970. O dilema entre promessas de desenvolvimento e riscos sociais e ambientais continuam a desafiar a região.


*Esta é a primeira reportagem de uma série elaborada pela Cáritas Regional Minas Gerais sobre as problemáticas e consequências socioambientais que envolvem a transformação do Vale do Jequitinhonha no "Vale do Lítio". A segunda reportagem da série pode ser acessada neste link.



Por Luísa Campos, da Cáritas Regional Minas Gerais



Tag