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Argumento do ‘lítio verde’ impulsiona a exploração desenfreada no Vale do Jequitinhonha

Geral

O Vale do Jequitinhonha é foco de mineradoras de capital estrangeiro uma vez que concentra, em seu solo, 85% da reserva nacional de lítio.

Publicação: 30/01/2024


A “corrida pelo lítio”, mineral que vem sendo chamado por empresários e investidores da mineração de “ouro branco” da transição energética, tem desencadeado uma série de complexas relações entre o passado colonial do Brasil, o neoextrativismo e os desafios ambientais, em especial no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.

A região ao nordeste do estado está na mira de grandes empreendimentos de capital estrangeiro uma vez que concentra, em seu solo, 85% da reserva nacional do lítio. O mineral é essencial para o mercado da tecnologia e, principalmente, para as baterias de automóveis elétricos. Este último, inclusive, vem sendo utilizado como ferramenta para impulsionar a estratégia de exploração do mineral nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri e, principalmente, justificar as consequências sociais, econômicas e ambientais que já se instalaram nos territórios explorados por mineradoras, como a Companhia Brasileira de Lítio (CBL) e a Sigma Lithium. 

O cenário é de crescente chegada de gigantes mineradoras, destinação dos lucros da extração para outros países e aprofundamento das consequências da exploração nas comunidades do Jequitinhonha e do Mucuri. O relatório da Agência Internacional de Energia (AIE) classifica o lítio como “um dos minerais críticos para a transição energética”, estratégia de substituição dos combustíveis fósseis. 

Frei Rodrigo Péret integra a Comissão Ecologia Integral e Mineração, grupo que surgiu com a perspectiva da urgência de combater os projetos que ameaçam a vida, parte deles relacionados à extração de minerais em território brasileiro. Péret explica que a transição energética é necessária, entretanto, a narrativa que se constrói em torno do que é preciso fazer para substituir os combustíveis fósseis é extremamente perigosa para os territórios que sempre foram explorados: “É uma narrativa muito agradável, mas como ela pensa? Ela sugere que o mundo que a gente conhece pode continuar quase como ele está hoje graças a um paradigma de crescimento verde. Vai tentar-se corrigir a falha do mercado aumentando a produção e a exploração, ao invés de repensar os negócios.”



A foto, de 18 de abril de 2023, mostra a cava Grota do Cirilo, onde a mineradora Sigma Lithium explora minério de lítio, em Itinga, no Vale do Jequitinhonha (MG). Créditos: REUTERS


Outros especialistas e organizações que atuam na defesa do meio ambiente, como o WWF, consideram ser urgente a transição energética para fontes sustentáveis (isto é, renováveis e com baixo impacto ambiental e social). Para o WWF, inclusive, o caminho é retirar os subsídios às energias fósseis e desenvolver outras fontes, como a solar, a eólica, a biomassa e a de resíduos, além de intensificar ações de eficiência energética e desenvolver a cadeia tecnológica do hidrogênio renovável.  


A colonização da América Latina continua

Historicamente, territórios da América Latina têm sido palco de intensa exploração de recursos e de seus povos. Diante da corrida do lítio, comunidades da Argentina, Chile e Bolívia convivem há décadas com as consequências da exploração do mineral. 

É na tríplice fronteira entre Argentina, Bolívia e Chile que está a região que ficou conhecida como “triângulo do lítio”, trecho dos Andes que concentra uma das maiores reservas de lítio do mundo. “[O triângulo do lítio é] uma denominação colonial que exemplifica a desvalorização do território, a desnaturalização e a sua dessacralização, reduzindo tudo a um recurso de onde se obtêm receitas”, explica o relatório mais recente do Observatório da Dívida na Globalização (ODG), estudo que analisa as dinâmicas que garantem o aumento da mineração do lítio em diversos países do Sul Global. 

Na região é também onde está a província argentina de Jujuy que, nos últimos anos, é cenário de intensa resistência dos moradores, principalmente das comunidades tradicionais, que ano após ano convivem com consequências extremas do neocolonialismo. A extração do lítio exige enormes quantidades de água e as comunidades, em sua maioria de agricultores e criadores de gado, afirmam que a atividade está secando o solo e poluindo a água. 

Os conflitos também se relacionam ao direito à propriedade da terra. Muitos dos moradores não possuem títulos legais de onde vivem há séculos, muito antes da chegada dos colonizadores espanhóis. Com isso, ainda convivem com o medo de serem despejados de suas casas após a aprovação de uma polêmica reforma constitucional aprovada em junho de 2023 por Gerardo Morales, governador de Jujuy. 


Os protestos na Argentina contra a exploração do lítio duram meses. Foto: Natalia Favre / BBC.

Moradores de Jujuy protestam em defesa de suas terras. Foto: Natalia Favre / BBC.


As comunidades da Argentina e do Chile, que convivem mais intensamente com o cotidiano de exploração, alertam que o impacto no ambiente é considerável, tanto pela enorme quantidade de água que o processo requer, como pela poluição do ar e da água causados pelos produtos químicos utilizados na extração. 

O argumento das mineradoras que operam na região é o mesmo: a extração é necessária para mitigar as alterações climáticas. Em entrevista à BBC, Marie-Pierre Lucesoli, gerente da câmara da mineração de Salta, outra província argentina rica em lítio, afirma que os processos de obtenção de lítio "evoluem diariamente com o objetivo de se tornarem mais sustentáveis".

Entretanto, Lucesoli argumenta que o lítio contribuirá para mitigar as alterações climáticas, uma vez que é um elemento-chave na produção das baterias de veículos elétricos. Para ela, o mineral faz parte "da transformação energética para descarbonizar o mundo".


A exploração no Jequitinhonha

A narrativa das grandes mineradoras para exploração do lítio no Vale do Jequitinhonha está em confronto com dilemas entre o impulso pela transição energética e a necessidade de preservar os ecossistemas locais e as comunidades tradicionais. Ao passo em que novas licenças para exploração são dadas e outras mineradoras chegam à localidade, entram em cena os diferentes conflitos entre mineradoras e empresários que, infelizmente, é de antigo conhecimento das comunidades mineiras. 

Minas Gerais é o estado com mais disputas entre comunidades e mineradoras no país. De acordo com o relatório mais recente do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios sobre os conflitos, produzido em 2022, Minas concentra 37% das disputas, seguido pelo Pará (12%) e o Amazonas (7,4%). Além das consequências diretas no meio ambiente e na vida social, os conflitos também têm em suas bases as alterações econômicas e a exploração desenfreada para benefício internacional. 

Aline Sulzbacher, do Observatório dos Vales do Semiárido Mineiro, explica ao Brasil de Fato que há uma grande dificuldade das grandes empresas em converter os lucros em benefícios locais para a população, ou mesmo realizar projetos que atendam diretamente às demandas das comunidades que tiveram suas regiões exploradas. 

Além disso, outro fator importante é o debate que já se instalou no Brasil sobre territórios livres de mineração, seja por sua agrobiodiversidade, ou pelo valor cultural que os povos e comunidades têm com essa ambiente: “No semiárido mineiro, tem várias comunidades que estão em processo de reconhecimento como povos tradicionais, que possuem tecnologias sociais que permitem a convivência com semiárido. Ou seja, é a lógica da convivência com semiárido a partir de vários saberes e fazeres que têm relação com a dinâmica que os territórios apresentam”.

Ana Cabral-Gardner, diretora-executiva da Sigma Lithium, se posicionou em entrevista ao Estadão defendendo o projeto no Vale do Jequitinhonha e utilizou a própria empresa como exemplo: “Toda a nossa operação é construída em torno de encontrar equilíbrio entre sustentabilidade e mineração. Fui chamada de ‘CEO hippie’.”

O insumo tecnológico pré-químico de lítio foi produzido pela Sigma Lithium e batizado de “lítio verde” porque, de acordo com a empresa, a planta de exploração não possui barragem de rejeitos. Além disso, a empresa afirma reutilizar a água da etapa de purificação do lítio, que não envolve agentes químicos. 

Os rejeitos são empilhados a seco e também são comercializados para a recuperação dos minerais residuais. Cabral defende que: “Na nossa visão, se existia algum metal em uma cadeia de fornecimento em que algum momento seríamos recompensados com o Prêmio Verde, seria justamente em uma das cadeias de fornecimento que levaria para as baterias dos carros elétricos”. No Brasil, existem pouco mais de 158 mil carros elétricos que apresentam, em média, um valor de mercado entre R$120 mil a R$150 mil.

A “corrida pelo lítio”, potencializada pelas gigantes montadoras de veículos, como a General Motors e a Telas, significa, somente, uma mudança de padrão de consumo individual: ao invés de abastecer o carro com gasolina, o que colocará o automóvel em movimento é a bateria de lítio. 

Rodrigo Péret afirma que esta é, inclusive, o carro-chefe da estratégia de exploração desenfreada, não apenas no Vale do Jequitinhonha, mas em todo Sul Global: "As grandes empresas e mineradoras começam a mostrar que grande parte da solução climática está no cano de descarga, e querem substituir toda a frota mundial de carros à combustão para os movidos a bateria. Mas não nos dizem como eles vão captar e o que é necessário para que esta tecnologia exista. A política ecológica, se é que essas empresas estão interessadas nisso, tem que ir além da redução das emissões de carbono. Vamos continuar utilizando um carro por família? Cria-se um fetiche de uma economia verde que não coloca a inovação no contexto das estruturas de poder. Não estamos discutindo que tipo de cidades queremos, que tipo de transporte coletivo queremos, muito menos estilo de vida.  Além do lítio, também se fala em aço verde, alumínio verde... causam menos emissão de gás carbônico, mas continuarão destruindo e impactando o meio ambiente".



Mensagem da deputada federal Duda Salabert (PDT) contribui para a discussão da transição energética. Foto: X/Reprodução.


Os impactos ambientais e sociais da extração de minerais, portanto, são agravados pelo aumento da demanda que está sendo gerada pela transição verde. Isso afeta as “zonas de sacrifício”, como o deserto de Atacama, a região de Antofagasta e Catamarca, onde o neocolonialismo se impôs – como demonstra estudo do Observatório da Dívida na Globalização (ODG) –, zona que já começa a se instalar no Vale do Jequitinhonha.

A publicação do ODG também propõe medidas para reduzir o impacto ambiental e a falta de justiça social na transição energética. “Devemos questionar o sentido de urgência que faz com que as grandes corporações sejam as que melhor podem enfrentar tal desafio. Claro, há necessidade de aceleração, mas do nosso ponto de vista, de outros tipos de transições”, aponta.

O estudo considera que é necessário diminuir a demanda por tecnologias no Norte Global. Cita o relatório “Meta de emissões zero com maior mobilidade e menor exploração mineira”, do think tank Climate and Community Project, que propõe elaborar três políticas para conter a demanda de lítio nos Estados Unidos até 2050: diminuir a quantidade de veículos particulares, reduzir o tamanho das baterias dos veículos elétricos e aumentar a reciclagem. Esta análise conclui que os Estados Unidos podem alcançar um modelo de mobilidade de zero emissões e, ao mesmo tempo, limitar em mais de 85% a quantidade de lítio necessária proveniente da extração primária.

Para acelerar a redução da demanda, o estudo do ODG ainda destaca que é necessário “um verdadeiro planejamento industrial público que vá além das políticas de estímulos financeiros e garantias para as grandes empresas, como os fundos NGEU, o Plano Industrial do Pacto Verde e o IRA”. O relatório também aponta que o planejamento deve estar vinculado a orçamentos de carbono, que sejam determinados levando em consideração a emergência climática, mas também a crise da biodiversidade e o esgotamento de recursos, quais setores industriais devem decrescer e ser redimensionados, e quais devem liderar a transição.


*Esta é a segunda reportagem de uma série elaborada pela Cáritas Regional Minas Gerais sobre as problemáticas e consequências socioambientais que envolvem a transformação do Vale do Jequitinhonha no "Vale do Lítio".  A primeira reportagem da série pode ser acessada neste link.



Por Luísa Campos, da Cáritas Regional Minas Gerais


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