COLABORE

Comunidades do Vale do Jequitinhonha sofrem com impactos socioambientais da “corrida do lítio"

Geral

A localidade será transformada em reduto da exploração para benefício externo. Comunidades temem que os impactos sejam irreversíveis.

Publicação: 13/03/2024


Entendido como um dos minerais críticos para a transição energética, diante da emergência climática global, o lítio é um dos principais focos de exploração de mineradoras ao redor do mundo. Nos últimos anos, vem sendo especialmente demandado uma vez que é utilizado para a fabricação de baterias de veículos elétricos, uma forma alternativa para os motores à combustão.

A Argentina é o quarto maior produtor mundial de lítio (atrás da Austrália, Chile e China), e muitos moradores das comunidades exploradas afirmam que não se beneficiam da indústria, além de terem seus modos de vida ameaçados: poluição de rios, do solo e do ar são frequentes, o que afeta as condições de trabalho e a renda de comunidades que têm em sua base laboral a agricultura e a pecuária. A escassez de água também preocupa, uma vez que a extração de lítio exige enormes quantidades de água, desviando cursos de rios e afetando nascentes. 

No Brasil, desde 2020, pelo menos, moradores do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, estão sendo forçados a conviver com graves alterações socioambientais provocadas pela extração de lítio na região, liderada pela mineradora Sygma Lithium e pela Companhia Brasileira de Lítio. A mina Grota do Cirilo, aberta pela Sygma, está entre os municípios de Araçuaí e Itinga e suas atividades já alteraram profundamente o meio ambiente local. 



Jazida de Lítio na cidade de Araçuaí, nordeste de Minas Gerais, explorado pela mineradora Sigma Lithium. Foto: Estadão


Outra jazida de lítio está localizada na Chapada do Lagoão, dentro do território de Araçuaí, Área de Preservação Ambiental (APA) que abriga mais de 130 nascentes, diferentes espécies nativas, além das comunidades Malhada Preta, Córrego do Narciso do Meio e do Quilombo Giral. A preocupação na cidade de Itinga, também cidade do Vale do Jequitinhonha,  é que os problemas ambientais e sociais se agravam a ponto de se tornarem irreversíveis. As comunidades de Taquaral Seco, Ponto do Piauí, Poço Dantas e Taquaral de Minas estão no raio de 1,5km da Grota do Cirilo. 

José Nelson atua como voluntário na Cáritas Diocesana de Araçuaí. Desde que a atividade da Sigma se intensificou na região, o agente Cáritas, que também é morador da cidade, vem notando graves alterações na qualidade do ar e nos modos de vida da população – consequências ainda mais aprofundadas para quem vive próximo à área de extração de lítio, em comunidades rurais: 

“Aquelas famílias que estão em torno do Complexo Industrial de Exploração do Lítio, que são as comunidades diretamente afetadas e que são comunidades rurais. A questão da poeira e dos barulhos já viraram rotina. Os moradores se queixam que as explosões são muito altas e que o ‘pueirão’ sobe e fica o dia inteiro. Imagina você respirando aquele pó o dia todo, todos os dias? Além disso, são comunidades muito tranquilas, mas com a chegada da mineração, está muito agitada, com trânsito e muito movimento de caminhões, o que traz um grande transtorno. Tudo isso em prol de um desenvolvimento que eles dizem que vai acontecer", afirma.

Alteração da paisagem e poeira são, somente, os primeiros problemas

Em processos neoextrativistas, como a exploração mineral do lítio, o primeiro impacto socioambiental a ser percebido é a alteração da paisagem, uma vez que a principal forma de extração mineral do país acontece através de minas a céu aberto. Ou seja, para que uma barragem seja instalada, é preciso que aconteça um desmatamento severo da região, além da retirada de todo o solo fértil. 

Bruno Milanez, coordenador do Grupo de Pesquisa Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS), afirma que a mineração assume um processo semelhante de “amputação da paisagem”, no qual mesmo as mineradoras adotando os melhores métodos de gestão ambiental, seja com recirculação de água, máquinas e equipamentos modernos, as tentativas são em vão: quando se fecha uma mina, a montanha não está mais lá. Onde existia montanha, agora, há uma cicatriz descomunal. O impacto no meio ambiente é imediato: com alteração da paisagem, há mudanças no microclima, na fauna, flora e em toda a dinâmica hidrológica.

A poluição atmosférica é, também, elencada como consequência severa do modelo de extração mineral do país, sendo mais facilmente percebida quando barragens são construídas próximas às comunidades. Nestes casos, a poluição é causada pela lama e pela poeira, trazidas das minas para as comunidades por meio dos ônibus, caminhões e automóveis que atendem as mineradoras.



Chapada do Lagoão possui mais de uma centena de nascentes catalogadas e é considerada a caixa d’água de Araçuaí (MG). Foto: MAB/MG


Em processos neoextrativistas, como a exploração mineral do lítio, um dos primeiros impactos socioambientais é a alteração da paisagem, uma vez que a principal forma de extração mineral do país acontece através de minas a céu aberto. Para que uma barragem seja instalada, é preciso que aconteça um desmatamento severo da região, além da retirada de todo o solo fértil.

A poluição atmosférica é, também, elencada como consequência severa do modelo de extração mineral do país, sendo mais facilmente percebida quando barragens são construídas próximas às comunidades. Nestes casos, a poluição é causada pela lama e pela poeira, trazidas das minas para as comunidades por meio dos ônibus, caminhões e automóveis que atendem as mineradoras.

Em um efeito cascata, os impactos da mineração escorrem, também, para os recursos hídricos. Além do alto consumo de água para lavagem e transporte do minério de ferro, a extração mineral acarreta no rebaixamento do lençol freático, comprometimento da recarga de aquíferos, além do risco de contaminação de nascentes, rios e mares. Entre os anos de 1986 e 2015, aconteceram, somente em Minas Gerais, oito grandes rompimentos de barragens. 

Com a intenção de debater os rumos das políticas públicas em relação ao lítio, a Câmara dos Deputados reuniu pela primeira vez, em 10 de maio de 2023, representantes da indústria automobilística, mineração de lítio e de baterias com deputados federais e técnicos do Ministério de Minas e de Energia (MME). Na ocasião, pouco se falou sobre políticas de proteção ao meio ambiente e quase nada se ouviu sobre cuidados com as populações afetadas no Vale do Jequitinhonha. Na maior parte do tempo, se discutiu a capacidade de participação do país na oportunidade econômica guiada pelo mercado chinês de produção de baterias.

Um dos maiores problemas da mineração de lítio é que o material é geralmente encontrado em regiões com pouca água – o que gera gasto maior durante o processo de mineração. Para cada tonelada de lítio, são necessários dois milhões de litros de água. Isso significa que para construir a bateria de um carro elétrico, que tem em média oito quilos de lítio, são necessários 16.000 litros de água. A Sigma Lithium, que já explora na localidade desde o início de 2023, deve consumir cerca de 42 mil litros de água por hora, em uma região marcada pela escassez hídrica. 

De acordo com a reportagem do Observatório da Mineração, o abastecimento de água potável com carro pipa, que antes a Aldeia Cinta Vermelha de Jundiba, em Araçuaí, contava, foi afetado. A Sigma fechou acordo com o fornecedor que, recebendo muito mais da multinacional, agora não quer atender os indígenas e quilombolas, não renovando o contrato e deixando faltar água.

Modos de vida impactados

O fluxo intenso de pessoas de fora para Araçuaí já mudou a dinâmica da cidade e gera inflação que se reflete no preço dos aluguéis. Alunos indígenas e quilombolas que moram na área rural e estudavam na cidade não conseguem mais pagar aluguel e muitos estão desistindo de estudar, mesmo no Instituto Federal da cidade, um centro de excelência. O custo de vida, dos alimentos e do transporte acompanham.

A exploração do lítio também pode agravar as desigualdades sociais no Vale do Jequitinhonha. A região é marcada pela presença de comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Essas comunidades podem ser afetadas pela exploração do lítio, seja pela perda de terras e recursos naturais, seja pela contaminação do meio ambiente.

Durante a 54ª sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro de 2023, Cleonice Pankararu, representante da comunidade indígena Pankararu, denunciou os graves impactos causados pelos empreendimentos minerários sobre terras indígenas. Cleonice Pankararu enfatizou que a construção de barragens, em particular, tem causado danos devastadores, destacando o Rio Jequitinhonha como uma vítima direta, resultando na perda de vidas em sua comunidade.



Indígenas Pankararu e quilombolas estão apreensivos diante das alterações ambientais. Foto: Folha de S.Paulo.


A liderança também abordou as consequências prejudiciais da instalação de redes de transmissão de energia de alta tensão dentro do território indígena, alertando para os efeitos nocivos sobre as comunidades locais e a biodiversidade: “todos esses projetos [exploração de lítio, instalação de barragens e linhas de transmissão de energias] foram implantados em nosso território sem nosso consentimento livre, prévio e informado. Solicitamos que seja respeitada a Convenção 169 da OIT, garantindo a proteção da vida e a autonomia dos povos indígenas e da Mãe Terra”, afirma.

A Consulta e o Consentimento Prévios, Livres, Informados e de Boa fé  é um direito garantido aos povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais, visando salvaguardar os valores e práticas sociais, culturais, religiosos e espirituais cultura. Essa Convenção, ratificada pelo Brasil e promulgada em 2004, garante ainda que os povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais sejam consultados, a partir de procedimentos culturalmente apropriados, e deem seu consentimento antes que decisão ou projeto que possa afetar seus modos de vida.

Mineração e crise climática 

No cenário global da crise climática, a atenção costuma se voltar para os combustíveis fósseis como principais vilões, mas há um ator menos evidente que desempenha um papel crucial no agravamento do problema: a indústria da mineração.

Entendemos que os combustíveis fósseis são essenciais para a produção de energia, gerando emissões de gases de efeito estufa que envolvem a Terra como um cobertor térmico, elevando as temperaturas. Contudo, o foco nas atividades mineradoras revela uma face menos explorada do problema. 

Isso porque, estudos apontam que a mineração é responsável por aproximadamente 7% das emissões globais de gases de efeito estufa, podendo alcançar até 28%. Este impacto ocorre durante o beneficiamento de minérios, processo intensivo em energia e emissões. Além disso, a mineração está intrinsecamente ligada ao desmatamento, seja pela alteração do solo, queimadas ou derrubadas de áreas florestais, liberando quantidades substanciais de CO2 na atmosfera.

Diante desse cenário crítico, surge a questão: o que está sendo feito em nível global pelos governos e corporações para reverter essa situação? A transição energética é uma solução em discussão, buscando reduzir a dependência dos combustíveis fósseis. No entanto, o dilema persiste, uma vez que mudar a fonte de energia não é suficiente se não houver alteração nos padrões de consumo e modos de produção dos países ao redor do mundo.

Larissa Vieira, Coordenadora do Projeto de Incidência na Pauta da Mineração (PIPAM), destaca que precisamos pensar sobre a crise climática e a transição energética com responsabilidade: “Precisamos pensar em uma transição energética justa e responsável para que os modos de vida dos territórios tradicionais não sejam ainda mais afetados. Seguir investindo em uma transição energética que fortalece a exploração mineral e a manutenção dos padrões individualistas de consumo não faz o menor sentido. É preciso pensar em mudanças estruturais que também promovam a justiça ambiental e climática, que democratizam o uso dos recursos naturais, que permitam a participação, que garantam o direito à autodeterminação de povos e comunidades tradicionais, que proteja os territórios tradicionais, fundamentais para a ação climática.”

Mobilização popular 

A transformação na região, contudo, tem sido questionada por comunidades e movimentos sociais afetados pelas mineradoras. No dia 5 de abril de 2023, um ofício assinado pelo MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e pela deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) foi encaminhado ao Ministério Público de Minas Gerais com uma denúncia de violação de direitos humanos.

O documento questiona o plano de prospecção da Sigma na Área de Preservação Ambiental de Chapada do Lagoão, e pede a anulação da autorização concedida à empresa, observando que o território é considerado “a caixa d’água do município de Araçuaí”, com mais de 139 nascentes e lar de 300 famílias quilombolas. A denúncia aponta que as famílias “não foram consultadas de forma livre, prévia e informada”, como prevê a lei, e indica os riscos culturais e ambientais da interferência no meio.

O documento é, também, fruto da mobilização dos moradores das comunidades impactadas. José Nelson, agente Cáritas em Araçuaí, explica que a atuação da Cáritas e de outras organizações e entidades, como o próprio MAB, fortalece o entendimento dos moradores sobre os riscos que a atuação de uma mineradora pode causar. A mobilização e o fortalecimento das comunidades é, inclusive, uma estratégia para compreender as narrativas construídas pelas empresas: “Há uma grande propaganda em relação a esses projetos, porque eles [os representantes das mineradoras] chegam nas comunidades e falam em ‘termos de recursos’, ‘bilhões’, ‘investimentos’, ‘desenvolvimento’, mas e aí? Onde a população enxerga isso? Porque o que fica nas localidades são os impactos. Por isso, estamos em mobilização com os moradores para avançar nessa discussão e provocar mudanças. De resultado, o Conselho conseguiu dar uma freada em relação ao avanço da Sigma”. 


*Esta é a terceira reportagem de uma série elaborada pela Cáritas Regional Minas Gerais sobre as problemáticas e consequências socioambientais que envolvem a transformação do Vale do Jequitinhonha no "Vale do Lítio". A primeira reportagem da série pode ser acessada neste link; e a segunda, neste link


Por Luísa Campos, da Cáritas Regional Minas Gerais

Tag