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Nota Pública: Decisão Judicial da comarca de Mariana proíbe manifestações populares

Áreas de Atuação

Cáritas manifesta preocupação: decisão proíbe protestos que impeçam a Renova de usar vias de acesso ao reassentamento de Paracatu de Baixo

Publicação: 14/07/2022


A Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais vem a público informar que tomou conhecimento acerca da decisão judicial prolatada nos autos nº 5003077-87.2022.8.13.0713, em que foi concedida pelo juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Mariana-MG tutela antecipada em caráter antecedente para determinar a abstenção da realização de reuniões ou manifestações que impeçam a utilização das vias públicas municipais que dão acesso ao reassentamento do Novo Paracatu de Baixo pela Fundação Renova, por seus contratados e por quaisquer pessoas ou veículos sob pena de multa, sem prejuízo da configuração de crime de desobediência.

A decisão judicial, dentre outros pontos, acolheu a tese suscitada pela Fundação Renova, imputando aos manifestantes, que agiam no exercício de seu direito de reunião pacífica, o atraso nas obras do reassentamento coletivo, o que causou enorme preocupação por parte desta Assessoria Técnica Independente.

Entenda sobre o caso

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso XVI, prevê o direito constitucional de reunião e manifestação pacífica, sem armas, em local aberto ao público, independentemente de autorização judicial, direito este garantido, inclusive, no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, no art. 15 do Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto nº 678/1992. Nesse aspecto, cumpre ressaltar que, entre as liberdades fundamentais que são asseguradas pela Constituição em uma sociedade que se pretenda democrática, inquestionavelmente, as liberdades de reunião e de manifestação, que integram a liberdade de expressão, ocupam posição de destaque.

A Cáritas entende que nenhum direito fundamental é absoluto. Entretanto, repudia que a decisão judicial tenha sido proferida sem a prévia oitiva dos manifestantes, embasada única e exclusivamente na narrativa apresentada unilateralmente pela Fundação Renova, sem apurar quais eram as suas reivindicações para fazer a devida ponderação de interesses envolvidos. Dessa forma, cabe asseverar que, no caso concreto, não restou comprovado qualquer excesso por parte dos manifestantes que tornasse justificável a restrição, pelo Poder Judiciário, à liberdade de manifestação. Corroborando esse entendimento, destaca-se que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 806.339, definiu que a ausência de notificação ou aviso prévio não torna ilegal a reunião pública e pacífica, como consequência obrigatória. Isso porque a função precípua da notificação ou do aviso prévio, conforme previsto na Constituição, é zelar para que o exercício do direito de reunião se dê de forma pacífica, sem frustrar outra reunião pública convocada para o mesmo lugar. Além disso, a partir do momento que a Polícia Militar lavrou a ocorrência da manifestação, é inconteste que o Poder Público estava ciente da reunião pacífica que se realizava naquele local.

É evidente que o direito de reunião exercido de forma lícita pelos manifestantes compreende um desdobramento do seu direito à liberdade de expressão, ao denunciar os atrasos, descumprimentos reiterados por parte da Fundação Renova, buscando serem ouvidos e atendidos pela entidade, uma vez que as pessoas atingidas, em especial os manifestantes, mais do que ninguém, tem interesse em ver as obras do reassentamento finalizadas e o seu direito à moradia digna garantido.

Ao formular o pedido de tutela provisória antecipada em caráter antecedente, uma das justificativas trazidas pela Fundação Renova é o suposto prejuízo financeiro que a entidade tem sofrido em decorrência do bloqueio na via pública municipal decorrente das manifestações. No entanto, convém ponderar que, com as manifestações, as pessoas atingidas buscam, no âmbito dos direitos que lhes são assegurados pela Constituição, exteriorizar toda a indignação pelo sofrimento com o qual são obrigadas a conviver há quase 07 (sete) anos, em razão da brusca mudança em seus modos de vida, por terem sido obrigados a sair de suas casas e respectivas comunidades, e ainda lutarem pela reparação de seus direitos que foram (e são) violados pela Fundação Renova e por suas mantenedoras. Nesse aspecto, o prejuízo causado a esses núcleos familiares é imensurável e vem sendo ampliado com o passar do tempo, sem que consigam obter a reparação integral pelos danos que lhes foram causados.

Convém ressaltar que os atrasos nas obras do reassentamento não têm qualquer relação com as manifestações recentes por parte da comunidade atingida, ao contrário do narrado pela empresa responsável pela execução das obras. A Fundação Renova obteve a concessão de três prazos distintos para a conclusão e entrega dos reassentamentos aos núcleos familiares atingidos de Mariana - 31.03.2019, 27.08.2020 e 27.02.2021 - os quais seguem sendo descumpridos, obstando, pois, o restabelecimento do direito fundamental à moradia digna. Dessa forma, nota-se que o atraso na execução das obras de construção das moradias e as respectivas adequações dos terrenos é consequência direta da política de atendimento praticada pela Fundação Renova ao longo das etapas do processo de reparação.

É fundamental pontuar que, antes mesmo do início das obras, foi possível testemunhar a protelação injustificável das etapas de: a) negociação e compra dos terrenos; b) realização de estudos para adequação legal e obtenção de licenças; c) elaboração/revisão dos projetos urbanísticos e dos projetos das edificações; d) o cumprimento dos prazos previstos nos convênios junto ao Poder Público. É inquestionável, portanto, o descabimento em se imputar às pessoas atingidas, no exercício do direito constitucional à manifestação, amparadas pela liberdade de expressão, o atraso para a execução e conclusão nas obras do reassentamento.

Não obstante, o que se vê é que a Fundação Renova e suas mantenedoras vêm se utilizando de estratégias processuais, buscando a chancela do Poder Judiciário para promover o silenciamento das comunidades acerca das violações de direito diuturnamente praticadas, em clara afronta aos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, bem como por normativas internacionais.

Além disso, cabe frisar que a inclusão das pessoas atingidas como rés em uma demanda que tem por objetivo impedir o direito à liberdade de manifestação e de expressão acarreta a revitimização dessas pessoas, que são silenciadas e, em decorrência disso, são impedidas de externalizar o sofrimento causado pela violação ao direito à moradia digna e à reparação justa e integral.

É importante relembrar, neste momento, que recentemente foi proferida uma decisão de cunho semelhante em sede de Agravo de Instrumento pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais1 em uma ação movida pela empresa Vale S/A, cujo teor é muito semelhante ao da presente, em que os atingidos da comunidade de Antônio Pereira foram impedidos de realizar manifestações em diversos locais que dão acesso às minas da empresa em questão.

A Cáritas destaca, ainda, sua preocupação com a exposição de alguns dos manifestantes perante a comunidade atingida, os quais foram arrolados pela Fundação Renova como réus no processo em questão, responsabilizando-os pelos atrasos e prejuízos em decorrência da paralisação das obras do reassentamento, em clara estratégia de desmobilização popular e instauração de conflitos internos na comunidade, quando se tem em mente ser incontroverso que muito antes da manifestação em questão, a Renova já se encontrava em mora quanto à entrega das moradias.

Diante deste cenário, a Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais se mantém firme, ao lado das pessoas atingidas, lutando pela conquista e preservação dos seus direitos violados, sobretudo com o objetivo de impedir que novos danos continuem sendo causados pela Fundação Renova e suas mantenedoras, ao longo desses anos, enquanto os núcleos familiares buscam uma reparação justa e integral.

1 - Autos nº 5003419-46.2021.8.13.0461 (Processo em 1ª Instância, 1ª Vara Cível da Comarca de Ouro Preto-MG); Agravo de Instrumento nº 1.0000.22.009757-0/001.


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