Em um momento em que a crise climática se intensifica e a exploração desenfreada dos elementos naturais ameaça a vida no planeta, a discussão sobre os Direitos da Natureza ganha cada vez mais relevância. No terceiro módulo do ciclo de formação “Crise climática, transição energética e os Direitos da Natureza”, organizado pela Cáritas MG, por meio do Projeto de Incidência na Pauta da Mineração (Pipam), a Rede Cáritas MG discutiu como o conceito de Direitos da Natureza pode ser uma ferramenta de defesa de territórios afetados pela exploração ambiental.
Conduzido pela professora Mariza Rios, advogada e professora de Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável na faculdade Dom Helder Câmara, e pelo agente Cáritas Aldinei Leão, assessor jurídico do Centro de Referência em Direitos Humanos do Norte de Minas (CRDH–Norte), o encontro destacou a importância de reconhecer os elementos da natureza como sujeitos que merecem ter o direito de permanecerem vivos e preservados, especialmente em regiões fortemente impactadas pela mineração e desmatamento em Minas Gerais, como o Vale do Jequitinhonha e a região Norte do estado.
O conceito dos Direitos da Natureza propõe um novo paradigma ético-jurídico inspirado nos conhecimentos ancestrais dos indígenas, povos que, a partir de uma cosmovisão, compreendem que todos os elementos da natureza estão interconectados: seres humanos, animais, vegetais e minerais. A natureza, então, é um sujeito de direitos por si só, e não objeto de direitos dos seres humanos, passível de apropriação e exploração.
Mariza Rios explicou que, no campo legislativo brasileiro, os Direitos da Natureza são um conceito novo, que propõe desafios para diferentes campos, especialmente para a ciência, os tribunais e os espaços políticos. Segundo a especialista, isso se deve à exigência de uma mudança profunda na forma como a sociedade pensa o papel da natureza: “A crise não é das comunidades, nem dos indígenas, quilombolas ou povos tradicionais. Não é um desafio porque os direitos da natureza sempre existiram e sempre foram defendidos por esses grupos. A crise é da própria ciência e do sistema jurídico, social e político. A ciência não tem dado conta do crescimento da crise ambiental”, afirmou.
De acordo com a especialista, a dificuldade central reside no fato de que as normas vigentes foram construídas sob uma lógica antropocêntrica, posicionando o ser humano como referência máxima e absoluta do mundo, e eurocêntrica, que privilegia a visão da Europa. Para os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, contudo, os Direitos da Natureza sempre existiram, não sendo um desafio, mas uma prática ancestral que reconhece a interdependência entre os seres humanos e o meio ambiente.
Direitos da Natureza: ferramenta de defesa no Norte de Minas
Aldinei Leão, advogado e assessor jurídico no Centro de Referência em Direitos Humanos do Norte de Minas (CRDH-Norte), executado pela Cáritas MG, complementou a discussão ao compartilhar a trajetória de mobilização popular que culminou no reconhecimento, por três leis municipais, do rio Mosquito como sujeito de direitos, um feito pioneiro em Minas Gerais e que se insere em uma recente discussão no campo jurídico do país.
O conceito de Direitos da Natureza, abordado no módulo, tem ganhado força internacionalmente e propõe que os ecossistemas, como rios, florestas e montanhas, sejam reconhecidos como sujeitos de direitos, com proteção legal própria. Entretanto, no Brasil, esse debate ainda está em construção, mas vem ganhando visibilidade, especialmente no contexto de regiões impactadas pela mineração e outras atividades extrativas que afetam diretamente os ecossistemas locais.
O processo de defesa popular do Mosquito foi intensificado após as chuvas que afetaram profundamente o sul da Bahia e o Norte de Minas Gerais, entre os meses de dezembro de 2021 e fevereiro de 2022. À época, a Cáritas Brasileira e o Regional Minas Gerais organizaram a campanha “SOS Bahia e Minas Gerais: solidariedade que transborda”. Em Porteirinha, por exemplo, devido aos impactos causados pelas cheias do rio Mosquito, mais de 50 famílias ficaram desalojadas e outras 35 desabrigadas, o que fez com que a gestão municipal decretasse situação de emergência.
Para auxílio dos municípios atingidos pelas chuvas, a campanha “S.O.S. Bahia e Minas Gerais” foi realizada em três fases: ajuda emergencial; reconstrução; e incidência política. As duas primeiras etapas, tratou-se do socorro emergencial, por meio da mobilização para arrecadação e distribuição de itens diversos (alimentos, remédios, roupas, repelentes, etc.); e da execução de projetos para reconstrução das vidas das famílias atingidas (recuperação de casas, roças, arranjos produtivos, etc).
Na fase de incidência política, foram estruturados espaços de diálogo sobre os processos construídos nas etapas iniciais da campanha, além de discutir os problemas relacionados à infraestrutura, com apresentação de propostas e sugestões aos órgãos públicos. Em Porteirinha, a comunidade reconheceu que, mais do que saber se proteger das enchentes, era preciso “cuidar da saúde do rio Mosquito” para evitar futuros desastres, já que o assoreamento causado pela poluição é um dos principais responsáveis pelas cheias na localidade: “Quando falaram de ‘saúde do rio’, igualaram o rio a nós, seres humanos, em grau de importância. Assim como é importante cuidar da nossa saúde, também é essencial cuidar da saúde de um rio, de um mar, de uma montanha”, explicou Aldinei, destacando a perspectiva ecocêntrica, que vê o ser humano como parte integrante da natureza, e não acima dela.
A etapa de incidência política foi fundamental, também, para a construção de Projeto de Lei (PL) que garante direitos ao Rio Mosquito. Nesse processo, foram realizadas reuniões presenciais e virtuais com todos os parceiros, famílias ribeirinhas e agricultoras, além do poder público e, a partir do estudo de outras experiências e de análises do contexto local, foi construída uma proposta que contemplou as demandas.
No Dia Mundial da Água de 2024, foram protocolados 4 PLs sobre os Direitos do Rio Mosquito, sendo um em âmbito estadual - PL 2178/2024 da Deputada Leninha que dispõe sobre o reconhecimento dos direitos do Rio Mosquito, afluente do Rio Gorutuba, no Estado, e seu enquadramento como ente especialmente protegido e dá outras providências - e um em cada um dos municípios por onde o rio passa. A partir daí, foi feito um esforço, com intenso trabalho de comunicação, para divulgar as ações e ajudar no convencimento e na sensibilização dos representantes do legislativo a aprovar os PLs para garantia dos Direitos do Rio Mosquito.
Nesse movimento e articulação, as três leis municipais foram aprovadas e logo sancionadas. Em Porteirinha, o PL foi aprovado dia 15 de abril, tornando a Lei Municipal 2.251/2024. Em Serranópolis de Minas, a Câmara aprovou texto similar no dia 04 de abril, dando origem à Lei Municipal nº 618/2024. Já em Nova Porteirinha, a aprovação se deu no dia 22 de maio, vindo a se tornar a Lei Municipal 723/2024. O Rio Mosquito, portanto, tornou-se sujeito de direito da nascente à foz, conforme determinar as referidas legislações, já no seu artigo primeiro:
Art. 1º - Ficam reconhecidos os direitos do Rio Mosquito e sujeito de direitos, e de todos os corpos d´água e seres vivos que nele existam naturalmente ou com quem ele se inter-relaciona, incluindo os seres humanos, na medida em que são inter-relacionados num sistema interconectado e independente.
Sobre o ciclo de formação
A Cáritas Minas Gerais, atenta aos princípios da construção coletiva e cooperação solidária compreende que, ao atuar em contextos sociopolíticos e pastorais, é crucial investir na formação contínua de suas equipes para qualificar os processos junto às comunidades.
Por isso, foi estruturado o ciclo de formação “Crise Climática, Transição Energética e os Direitos da Natureza”, promovido pelo Projeto de Incidência na Pauta da Mineração (PIPAM). A formação é voltada para todas as pessoas que fazem parte da Rede Minas Gerais e tem como objetivo aprofundar os conhecimentos entre os agentes Cáritas sobre temas cruciais para o enfrentamento da crise climática e a proteção de nossa Casa Comum.
O primeiro módulo foi realizado em julho, de forma presencial, na etapa de Monitoramento do PMAS (metodologia de gestão adotada pela Cáritas que engloba as etapas de Planejamento, Monitoramento e Avaliação). O módulo abordou as ações que nos fizeram chegar até este contexto de crise climática e suscitou reflexões sobre a atuação da Cáritas em diferentes cenários frente às emergências climáticas.
O segundo, no dia 17 de setembro, discutiu o tema “Transição energética, 'capitalismo verde' e a exploração da nossa Casa Comum”. Embora a transição energética seja fundamental para reduzir a dependência de combustíveis fósseis, também gera inúmeros impactos socioambientais, principalmente em comunidades vulnerabilizadas, aprofundando o racismo ambiental. A mineração do lítio, essencial para a produção de baterias para carros elétricos, por exemplo, traz sérios danos ambientais e sociais em regiões como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.
No dia 22 de outubro, o terceiro módulo trouxe para o centro da discussão os Direitos da Natureza no contexto do neoextrativismo. O conceito do direito, que tem ganhado força internacionalmente, propõe que a natureza seja reconhecida como sujeito de direitos, o que significa que os ecossistemas teriam proteção legal própria. No Brasil, essa ideia ainda está em construção, mas já começa a ganhar visibilidade, especialmente em debates sobre o impacto da mineração e da exploração de recursos naturais.
Para finalizar o ciclo de formação, o quarto módulo está agendado para o dia 3 de dezembro e abordará “A Rede Cáritas MG na construção da sociedade do Bem Viver”, tendo como proposta traçar caminhos para a atuação da Rede com foco na proteção da nossa Casa Comum.